O IBGE e o país da pedra lascada

O ministro incontinente da Economia, Paulo Guedes, desovou mais um de seus catataus ao admitir, numa boa, que um órgão a ele subordinado é sinônimo de atraso técnico e ineficiência: “O IBGE ainda está na idade da pedra lascada”, teria afirmado. Como palestrante de oposição ao próprio governo, o cáustico comentário foi na mosca. Guedes por vezes se esquece que foi ele, não outro qualquer, o autonomeado superministro que decidiu acumular cinco áreas ministeriais debaixo do seu chapéu. Passados quase três anos de uma gestão que ainda não mostrou a que veio, é lícito especular o que passa pela cabeça do atormentado figurão. A boca fala pelo coração. O ato falho do discurso revela a culpa escondida na alma: lá no fundo, o xará sabe que o país do seu chefe voltou à pedra lascada. Inconscientemente, ele repudia qualquer associação com a lambança e tenta passar a pecha ao mensageiro das más notícias estatísticas, o nosso discreto e competente IBGE.

Desocupação e fome

Os ibgeanos e admiradores de Teixeira de Freitas, fundador do IBGE em 1936, podem ficar sossegados. O lero-lero ministerial não é com eles. O IBGE apenas teve o azar de anunciar que a população ocupada do Brasil, no trimestre findo em maio, contava apenas 86,7 milhões de pessoas, incluindo empregados com e sem carteiras assinadas, gente por conta própria, domésticos e empresários. Logo antes da pandemia, esse mesmo número rondava em torno de 95 milhões. Numa conta rápida, pelo menos oito milhões de brasileiros ainda não recuperaram sua fonte de renda. O número com o qual o ministro opera é o dos que têm a sorte de ter uma carteira assinada de trabalho. Pelo Caged, que recebe os dados de empresas formalizadas, o reemprego vem acontecendo. Mas o IBGE não disse outra coisa. Tem havido até mais reemprego no setor informal (mais de 2 milhões) do que no citado segmento da carteira assinada (cerca de 1,2 milhão). Pela conta geral da PNAD do IBGE, desde o grande estrago da pandemia cerca de 4 milhões teriam voltado ao trabalho, contando com novos MEI. Essa estimativa bate com a recuperação apontada pelo IBGE no mercado de trabalho completo, que voltou aos 86 milhões de postos ocupados. Mas o IBGE revela, por outro lado, a incômoda realidade dos quase 15 milhões ainda buscando um emprego, enquanto outros tantos seguem desalentados ou subutilizados, um exército de pessoas, especialmente de jovens, que vive das migalhas assistenciais de um auxílio emergencial que já vai se tornando estrutural num país tristemente reingressado ao mapa da fome.

Promessas vãs

O país que voltou à pedra lascada da falta de comida, em meio a safras recordes do agronegócio, este é o fato que atormenta as noites do superministro e lhe assombra o currículo de tantas promessas descumpridas. Humildade é uma virtude escassa… Uma alternativa ao desembarque prematuro do cargo será desembaraçar-se dos compromissos assumidos. O ministro acaba de se desvencilhar do maior abacaxi de todos: a previdência social. Pelos dados do INSS, o número de contribuintes efetivos ao regime teria caído de 59,3 milhões em dez/2019, antes da pandemia, para os atuais 55,2 milhões, dados até maio passado. Cerca de 4 milhões de contribuintes “evaporaram” do INSS desde o início da tragédia da Covid. Esse dado de redução de contribuintes ao INSS (4 milhões, dentre 8 milhões de desempregados formais e informais, desde então) é compatível com o total de desempregados pela PNAD do IBGE. Enquanto isso, noticia-se que 2 milhões de brasileiros aguardam na fila invisível dos solicitantes de aposentadoria, perícia médica, pensão ou BPC, junto ao INSS. Como o amável ministro qualificaria, então, a previdência social, que ele reformou com a badalada promessa de fazer 1 trilhão de reais de economia fiscal em dez anos? Esqueçam. O INSS, até hoje, acumula um novo déficit que ultrapassa 300 bilhões. Mas isso não é mais problema para o ministro antropólogo. Bolsonaro recriou o ministério da previdência. Em breve, se recriarem o ministério do planejamento, o currículo de Guedes não precisará se assustar com outras questões impertinentes, como a falta de um censo demográfico para contar a população, ou a falta de verbas para cobrir as atividades científicas do País. Lembrando, é bom que o ministro fique longe de verbas para cobrir a manutenção de prédios culturais, como a defunta Cinemateca brasileira ou o controle de queimadas no Cerrado e Amazônia. É prudente ficar longe de fogo. Mesmo que seja só um foguinho aceso com pedra lascada.

Paulo Rabello é economista, diretor da RC Consultores, fundador do Atlântico – Instituto de Ação Cidadã e tem desenvolvido propostas de reforma tributária para o país desde os anos 1980.

Artigo publicado originalmente pelo ESTADO DE MINAS.

Assista também a entrevista concedida por Paulo Rabello ao Jornal Gente, da Rádio Bandeirantes :

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