A tragédia do RS e a inovação dos togados

A tragédia do RS e a inovação dos togados

Publicado originalmente na página Informe Jurídico, em 05/05/2024.

Kátia Magalhães

Na manhã deste domingo, o ministro Edson Fachin, do STF, deixou as instalações do tribunal para se juntar ao atual assentado no Planalto, a vários de seus ministros, e aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para um sobrevoo e uma inspeção de campo pelas regiões devastadas pela calamidade no Estado do Rio Grande do Sul. Em coletiva de imprensa, o togado se manifestou, em nome do Supremo, para agradecer pelo convite a participar da comitiva presidencial, e para afirmar que: “o Poder Judiciário está presente para reunir seus esforços afim de salvar pessoas, e reconstruir o Estado do Rio Grande do Sul.”

Enfatizou a necessidade de adoção de um “regime jurídico emergencial”, para que juízes, “quando chamados ou quando tomarem iniciativas, interpretem a Constituição e as leis, excepcionalizando determinados limites que não são compatíveis com essa emergência climática.” Frisou, em particular, o comando do artigo 167-A da Constituição, que, nas palavras de Fachin, “não deve ser impedimento para salvar pessoas e reconstruir esse grande Estado (RS)”.

Solidariedade por parte de um alto dignitário compassivo? Talvez, em local indecifrável do seu íntimo. No âmbito público, creio ser possível identificar algo bem diverso.

Como reiteradamente comentado aqui, juízes são árbitros de litígios concretos entre as partes; nessa condição, não se manifestam, em público, sobre situações fora dos autos, não formulam, nem ajudam mandatários eleitos na elaboração de políticas públicas. No desempenho de suas atribuições, esses servidores sem votos só podem deixar a sede do juízo para a realização das chamadas inspeções judiciais, ou seja, para vistoriarem pessoas ou coisas, com vistas ao esclarecimento de fatos relevantes para uma certa causa (artigo 481 do Código de Processo Civil). Portanto, a inclusão de Fachin na comitiva dos figurões do Executivo e do Legislativo, bem longe de ser louvável, configura mais uma das anomalias já banalizadas em nossos tempos estranhos.

O teor de sua fala aos jornalistas assusta todo aquele dotado de um mínimo de memória e bom senso. Em sua primeira referência ao ainda indefinido “regime jurídico emergencial”, Fachin tratou de deixar bem claro que juízes podem ser chamados, ou tomar iniciativas. Traduzindo: podem exercer sua jurisdição mediante provocação das partes interessadas (como deve ser), assim como podem atuar de ofício (como jamais poderia ser). O diabo mora nos detalhes, e pode acreditar, caro leitor, que esse detalhe na frase do togado foi muito além de uma inocente manobra retórica.

A excepcionalização dos “limites” – que só podem ser os da Constituição e das leis – nos traz à mente os horrores recentes praticados por autoridades, sob a chancela de togados, durante a pandemia de Covid-19. Recordemos, por exemplo, as proibições do simples ir e vir, a vedação aos despejos de inquilinos inadimplentes e até a recusa a liminares em ações possessórias para a expulsão de invasores de imóveis rurais e urbanos. De lá para cá, o autoritarismo judicial não fez senão cavalgar, e o que foi medonho nos idos de 2020 e 2021 pode ser bem mais catastrófico no cenário atual.

Aliás, chamou a atenção a menção, por Fachin, ao artigo 167-A da Constituição, sem qualquer preocupação em explicitar aos ouvintes leigos do que se trata. Pois eu o faço: esse dispositivo constitucional se destina à promoção um controle financeiro e fiscal dos gastos públicos, de modo a que as despesas correntes não ultrapassem 95% da receita corrente líquida arrecadada pelo ente público. Portanto, se, no entendimento de Fachin, a norma inserida na CF a duras penas não será impedimento para a salvação de vidas, podemos contar com a abertura da porteira, pelo Judiciário, para uma farra fiscal, sob o pretexto sórdido da necessidade de resgate de pessoas. Exatamente como ocorreu durante o período pandêmico, nas compras públicas sem licitação e expressivo superfaturamento, protagonizadas por figurões da política e da saúde.

Todas as tragédias por aqui, sejam elas climáticas, sanitárias ou de outra natureza, servem de alegações para que os nossos potentados deem início a novos ciclos de gasto desenfreado de verbas públicas, com pouca ou nenhuma utilidade para o cidadão comum. Por acaso, Fachin e seus pares renunciarão a todas as benesses que cercam a sua corte? Terá Fachin implorado a Rodrigo Pacheco que arquive para sempre a famigerada PEC do Quinquênio para magistrados? Terá rogado aos políticos, seus colegas de comitiva, que abram mão do fundo partidário bilionário para as eleições municipais deste ano? Que nada. Os eventuais ônus certamente recairão sobre as costas exaustas do setor produtivo.

A maior crise humanitária atravessada pelo RS servirá para que a cúpula reinante, incluindo a togada, imponha seus desejos e sua gastança, tudo sob uma retórica hipócrita de auxílio às vítimas da catástrofe. Não sei como nossos “dignitários” conseguem responder às suas consciências. Se é que ainda as têm.

Confira a íntegra do discurso de Fachin:

 

Katia Magalhães

Kátia Magalhães (OAB/RJ 95.511) é advogada e tradutora jurídica no Rio de Janeiro (RJ). Graduada pela UFRJ (1997) e com MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ pela FGV/RJ (2001). Atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros. Atuante na área de traduções jurídicas, nos idiomas Inglês, Francês e Alemão. Coautora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, em comemoração pelos 100 Anos da Revista dos Tribunais. Criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube. Colunista do Instituto Liberal (coluna Judiciário em Foco). Colunista do Boletim da Liberdade.

 

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