Entre Cabral e Tiradentes
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 22/04/2023.
Paulo Rabello de Castro
Volta e meia, deparamos com a embaraçosa constatação: nós, brasileiros, guardamos mais intimidade com o insucesso. A proximidade de duas datas relevantes – 21 e 22 de abril – chama atenção. Ontem, num feriado nacional, o Brasil parou para lembrar Tiradentes, mártir de uma conjuração mal-sucedida contra a cobrança de impostos exorbitantes pela Coroa portuguesa. Hoje, em dia comum, lembramos o Descobrimento da Terra Brasilis, a chegada de Cabral ao novo continente da esperança tropical. Entre os dois episódios, pranteamos a dor com um dia sem trabalho. Nos EUA, a descoberta da América por Cristóvão Colombo – o Columbus Day – é o dia feriado para comemorar a chegada ao Novo Mundo.
O Novo Mundo da esperança brasileira parece ter ficado para trás. Dados negativos da realidade diária vão enforcando e esquartejando a alma brasileira. Tiradentes passa a ser muito mais real do que Cabral no dia-a-dia do sufoco dos impostos, do susto, da insegurança nas ruas e, sobretudo, pelo abandono e indiferença a que estamos relegados.
Existe explicação para o fato dessa sensação estranha de perda. Como coletivo de nação, tripudiamos princípios fundamentais para o sucesso e desenvolvimento geral. Menciono três deles com prioridade. Representação. Federação. Participação. O primeiro deles é o suporte essencial da liberdade política, a Representação. O voto, em si, não basta para aperfeiçoar um sistema de aproximação dos representados aos seus representantes. A intermediação da vontade popular por um enxame de partidos políticos contamina o ambiente da Representação. A perpetuação dos representantes com direito a reeleições sucessivas infantiliza a vontade dos representados. Já não importa o que os políticos estejam fazendo, desde que lhes seja garantida a continuidade da representação. Entra ano e sai ano, são as mesmas caras com os mesmos vícios, aos quais nos habituamos numa Síndrome de repetição. A necessária reforma política teria uma pauta: direito ao plebiscito de iniciativa popular, o afastamento do mau representante (recall), o voto distrital, o fim da reeleição, o candidato independente. Todas essas são pautas perdidas no ambiente atual, dominado pela “governança dos onze” como poderia se chamar a protuberante atuação do STF.
A Federação é o segundo princípio estrangulado. Reunir-se em “federação” pressupõe certa autonomia das partes que a compõem. Mas criamos regras de suprema dependência fiscal e financeira ao poder centralizado em Brasília. A vida das pessoas acontece onde moram, nos seus municípios. Mas os tributos são recolhidos das pessoas nas suas cidades e vilas para ir “passear” em Brasília e nas capitais estaduais, de onde retornam – por regras de transferência burocrática – já desidratados pela extração dos pedágios políticos que sustentam as máquinas do poder central. Municípios são considerados dependentes das verbas federais ou estaduais porque os tributos transitam e somem. A Federação brasileira é uma ficção com o atual sistema de tributos “compartilhados” instituída pela CF88. Estados e municípios são sócios passivos do imposto de renda federal. Em compensação, a União invadiu a seara do consumo e tributa para si bens e serviços. A atual proposta de reforma tributária, em vez de “descruzar” essas intromissões de competência, pretende acentuá-las ainda mais pela redução da capacidade de tributar dos municípios. Se passar como está, a reforma tributária do governo Lula (que já foi proposta de Bolsonaro) vai iniciar a era dos cashbacks municipais. Os cashbacks serão as futuras “mesadas” de Brasília – devoluções de recursos que nunca deveriam ter saído das cidades de onde vieram – mandadas aos prefeitos como bondades do governante central para sustentar milhares de prefeituras sem caixa.
A falta de Participação na (pouca) prosperidade econômica do País completa o tripé da destituição da cidadania. A poupança nacional é o segmento mais estatizado pela voracidade do poder central. Quase ninguém percebe isso. O brasileiro poupa para financiar o governo. E o governo se endivida para engordar sua máquina. O item investimento passou longe das metas do novo “arcabouço fiscal” do ministro Haddad. Para pagar juros altos à dívida que toma na praça, esse mesmo governo cobra altos impostos e inflaciona. Os mais pobres ficam com essa segunda parte: recolher os mais altos tributos de consumo do planeta e a previdência mais onerosa. A incumbência dos mais ricos, que aplicam saldos, é usufruir os juros altos. Nem com muita bolsa família, BPC, auxílios disso e daquilo, o governo dará conta de cortar o ciclo vicioso de juros altos, muita gastança e pouco investimento, que expulsa a grande maioria do circuito da diminuta prosperidade e os empurra para o superendividamento e à subtração de futuro. Não à toa, a maioria dos jovens hoje responde que preferiria ter uma oportunidade fora do País.
Sem Representação, sem Federação e sem Participação, não admira que nosso consolo seja nos aninhar à sombra do patíbulo do mártir da Independência. Cabral nos desculpe, mas uma nova Primeira Missa precisaria ser rezada.
Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. Foi Presidente do Instituto Atlântico e fundador da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos públicos. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa.
O artigo acima não representa, necessariamente, a opinião do Atlântico.