Mordendo a ponta do iceberg

Mordendo a ponta do iceberg

Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 27/01/2024.

Paulo Rabello de Castro

Envolta em grande expectativa, a nova política industrial do governo Lula ganhou logo um apelido oficial — NIB — no documento de 102 páginas de powerpoint. NIB é uma abreviação correta para a nova política industrial. Por coincidência, NIB em inglês quer dizer “ponta” ou “bico”. O verbo correspondente (to nib) significa “mordiscar”, dar uma mordidinha. Em inglês, portanto, o novo programa NIB adquire, sem querer, um sentido exato. Nova Indústria Brasil (NIB) não é mais do que uma mordidinha na ponta do iceberg de questões do amplo setor industrial brasileiro. O documento tem a virtude da intenção reta. Mas fica por aí. Não consegue, como documento de planejamento federal, entregar orientações precisas porque carece de definições precedentes à política industrial do País. Falta o plano de governo para o próprio País. Desde o longínquo José Sarney, governos vêm se sucedendo como administradores de crises inflacionárias e voos de galinha, sem serem cobrados do que vieram de fato fazer sentados na cadeira da presidência. Por escrito, falta definição do projeto nacional desde a década perdida dos 1980. A Constituição de 1988 até prevê o plano nacional de desenvolvimento no seu artigo 174. Mas esse tal plano estratégico de País continua um mistério.

Sem plano nacional, fica prejudicado qualquer programa setorial, não importando que seja o da indústria ou de outro setor. O setor industrial, em especial, se ressente da falta desse “compromisso do governo com a nação”, pois seria ele que traduziria os elementos de CONFIANÇA e de EXPECTATIVA POSITIVA, essenciais à decisão de um empresário ao investir numa fábrica nova, renovar seu parque de máquinas ou sua frota de veículos. Portanto, não basta um “plano de indústria”. A confiança deve ser numa visão de como serão os próximos anos ou décadas. Projetar a demanda pelo petróleo, por minerais como o ferro, ou agropecuários como café, soja ou carnes, segmentos que têm ampla sustentação no consumo mundial, resulta menos complexo do que um empresário nacional apostar na rentabilidade de um negócio voltado à fundição especializada, à química fina, ou ao fabrico de placas de semicondutores.

Lendo o texto do NIB, mesmo com boa vontade, ainda assim se percebem os espaços vazios do documento. Para fechar o texto, os autores do NIB precisaram fazer umas quantas heroicas simplificações da realidade: 1) o NIB não traz quaisquer metas quantitativas de valor de produção ou exportação, e sim, meros indicadores de “melhoria” ou de avanço de bem-estar; 2) o NIB não aborda senão seis grandes segmentos da transformação industrial [agroindústria, saúde, infraestrutura e cidades, área digital, sustentabilidade e defesa] sendo estes, na maioria, segmentos apenas indiretamente ligados à produção fabril, vinculados a “missões” como ampliar índices de mecanização no campo, reduzir a dependência aos insumos e fármacos importados ou diminuir o tempo de viagem dos trabalhadores entre casa e trabalho nas cidades; 3) sobre abordar vários outros segmentos industriais, de padarias à química fina, de mineração a indústrias criativas, nem uma palavra é emitida; 4) não há qualquer abordagem regional da indústria no espaço brasileiro, notoriamente díspar; 5) não há diagnóstico do sofrimento diário dos empreendedores industriais, mormente os PMEs, com as mazelas de contágio universal -nomeadamente, os juros mais elevados do planeta, o absurdo nível de tributação incidente e a burocracia feroz, além da proverbial insegurança pública, tanto pessoal como das mercadorias industriais que circulam nas estradas e cidades.

Este último item, as mazelas de contágio geral “esquecidas” na abordagem do NIB, é o que mais pesa, moralmente, contra a presunção de reta intenção do documento. Um governo incapaz de segurar, por exemplo, o custo do Fundo eleitoral de 2024 (serão “doados” R$4,9 bi) não terá credibilidade para assegurar que o BNDES alcance um dispêndio extra de R$300 bi no NIB entre 2024 e 2026, como prometido no texto. Esta crítica moral pesa mais do que apontar que o NIB repete ideias e políticas fracassadas do passado. Deixemos o passado em paz. A questão agora é como despertar confiança nos investimentos industriais do futuro. O NIB pretende manejar um iceberg industrial. Quem se propõe a trabalhar com um iceberg de problemas, não pode ficar apenas nas primeiras mordidinhas.

 

Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. ​Foi Presidente do Instituto Atlântico e fundador da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente, que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos públicos. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa. 

 

 

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