Estrumpulias

Quando meu primo Ziraldo, genial cartunista mineiro, criou o imortal Menino Maluquinho, com aquela panela redonda na cabeça e um sorriso matreiro de garoto impossível de ser encabrestado, não poderia imaginar que estaria fazendo uma profética previsão geopolítica. Passadas décadas da criação do Menino, surge na cena mundial o Velho Malucão. Donald Trump é o novo personagem mundial impossível de ser contido nas quatro linhas das convenções diplomáticas e do trato considerado normal entre nações ditas soberanas em pleno século 21. Trump é brincadeira, Trump é estripulia em nível planetário. Trump é estrumpulia.

Apenas aos 50 dias de um mandato fogueteiro em termos de declarações de intenção e de ordens executivas, Trump reiterou intenção de anexar a Groenlândia ao território americano (“por razões de segurança estratégica”) ao mesmo tempo que reivindicava controle do Canal do Panamá e propunha ocupar Gaza para a transformar numa Riviera do Oriente Médio. J. K. Rowling, a criadora de Harry Potter, não teria concebido um script mais surpreendente. No campo econômico, Trump não fez por menos. Foi brincar de roda com o arqui-inimigo da América, o russo Vladimir Putin, escorraçou da Casa Branca o líder ucraniano Zelensky, enquanto praticava bullying tarifário aplicando punição à entrada de produtos dos vizinhos Canadá e México com os quais os Estados Unidos têm (ou tinham, até aqui) um superlativo tratado de livre comércio, o NAFTA. Desde o último dia 4 de março, o conceito de comércio livre foi para o espaço, pela imposição de tarifas de 25% aos canadenses e mexicanos, não antes sem deixar em suspenso a aplicação desse imposto sobre peças importadas de automóveis, essenciais para a integração e montagem dos veículos em solo americano.

As estrumpulias de Donald se somam às musquetagens do seu principal colaborador, Elon Musk, que pôs fogo no parquinho da Administração americana, ao cortar verbas e encerrar programas federais, demitir milhares de servidores, tudo em nome de uma suposta eficiência da gestão da máquina pública. Outros secretários do governo de Trump devem estar preparando semelhantes medidas em suas áreas de atuação. Trata-se de uma remexida geral, um “barata-voa” nas rotinas dos EUA e do mundo. A maneira trumpista de revirar o caldo é espantosa, mas o fato é que o doce dos americanos está pegando no fundo da panela. Trump sabe que precisa mexer com a colher lá no fundo dos múltiplos compromissos e envolvimentos dos EUA no mundo, tanto quanto na esfera doméstica, se quiser reordenar as contas explosivas da dívida financeira do Tesouro dos Estados Unidos (em 120% do PIB) e derrubar o déficit anual do orçamento federal que encosta em quase $2 trilhões (trilhões mesmo!). Essa gastança desenfreada das últimas duas décadas após o abalo financeiro de Wall Street tem origem nas mais diversas fontes de vazamento de recursos, principalmente guerras e manobras militares permanentes nos quatro cantos do mundo, os cheques milionários distribuídos pelo próprio Trump à população na pandemia do Covid, os programas de subsídios pró-ambiente lançados por Biden e, mais importante, a indigesta conta dos juros anuais que pingam sem parar sobre a dívida pública de $30 trilhões.

Trump sabe reconhecer o cheiro e o gosto amargo de uma falência por haver passado por uma. Ele sabe também, por experiência do mandato anterior, que um governo já começa terminando. Ele não terá os quatro anos pelos quais se elegeu para deflagrar as medidas que precisa tomar. Enfrentará eleições parlamentares em menos de dois anos. Portanto, em termos práticos, Trump joga uma partida de tempo único, sem intervalo, que não passará de meados do próximo ano. Esse é o tempo de que dispõe para recompor as finanças públicas dos EUA. Isso requer um cessar-fogo geral no plano mundial, daí a pressa de obter armistícios na Ucrânia e com Israel/Hamas/Hesbollah. Mais ainda. Os EUA precisam cortar custos internos para tornar suas indústrias competitivas. O mecanismo protecionista das tarifas impostas aos concorrentes não passa de um truque para ganhar tempo para tentar recompor as forças internas da nação americana.

No fundo, há um grande desespero e aflição escondidos nas estripulias de Trump. A missão parece ser maior do que o homem. O modo teatral de Trump revela o que esconde por trás da máscara do espetáculo: a perda da grandeza do império mundial que os EUA conseguiram construir após sua vitória na 2ª guerra mundial. O mundo já se tornou multipolar e vai se organizando em blocos e elos de interesses que os EUA não mais definem nem comandam.  A panela em cima da cabeça de Trump é a própria sociedade planetária do século 21, que desafia a capacidade de qualquer gestor público.

Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, M.A. e Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. ​Fundador do Instituto Atlântico e da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente, que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos públicos. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa.

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