Desigualdade, marca intolerável da covid-19 no Brasil
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 18/12/2021.
Paulo Rabello de Castro
Se perguntarmos qual terá sido a característica marcante da experiência do covid-19 para o Brasil e nosso povo, eu não hesitaria de marcar a palavra Desigualdade. As diferenças sociais, todas elas, das toleráveis até as intragáveis, se acentuaram com a pandemia e pelo modo como governantes e a sociedade foram reagindo. O país nunca foi exemplo de igualdade e equidade. Durante e pós-covid, a atuação do governo só fez piorar o fosso entre o topo e a base da pirâmide social. Entre os estudantes, por exemplo, a escola em casa, sem computador e sem internet, mais atrasou quem menos poderia ter ficado para trás. No mundo profissional, milhões de desempregados ainda buscam o suporte do auxílio que mudou de nome, mas não de DNA. O novo Auxílio Brasil é a cristalização do incentivo ao não-trabalho. As vagas escassearam, o empresário recuou, o crédito murchou e encareceu. O governo promete, agora, jogar ao mar 17 milhões de boias de 400 reais, mas sem qualquer noção de como transformar náufragos sociais em remadores. Viramos o país do auxílio, dos pedintes e dos humilhados em filas de espera. Enquanto isso, um outro Brasil disputa as últimas vagas em hotéis e aviões num frenético embate por rever praias, montanhas e respirar uma relativa liberdade do vírus. Duas realidades chocantes, num só corpo social.
Ortega y Gasset, filósofo espanhol e intérprete do homem no século 20, nos lembrava: “Eu sou eu e minha circunstância; e se eu não puder salvá-la, tampouco salvarei a mim”. Isso foi dito em 1914. Hoje o dito está mais válido e claro do que um século atrás. Para Ortega, “salvar a própria circunstância”, é conhecer a realidade à volta da pessoa, para aprender a operá-la … e assim salvar-se, como pessoa individual ou como um coletivo, no caso, o Brasil. Se sentimos o Brasil “perdido”, essa percepção não é equivocada. Nossas reações de massa são diariamente forjadas pelo sequestro de compreensão mínima do significado de governar e ser governado, de liderar e ser liderado. Somos tangidos. Fomos cegados. Com isso, o fosso das enormes desigualdades nos provoca alienação e estupor. Ao ensejo da nova campanha eleitoral de 2022, haverá novo concurso de promessas vazias para tentar conduzir o brasileiro massificado e estuporado a um novo estágio de adesão cega às fantasias mais selvagens. Candidatos racionais (se tal categoria existe) não terão espaço para sequer enunciar propostas de conteúdo. Cores e jingles, rimas, mágicas e fake news em profusão, ocuparão a cabeça do eleitor sequestrado por seu próprio horror do futuro.
Aqui, contudo, reside um espaço para a racionalidade de uma proposta com princípio, meio e fim, com alguma chance de prevalecer sobre a propaganda marota. Se a proposta racional puder acenar com uma resposta direta a esse horror ao futuro, transmitindo segurança ao brasileiro, onde hoje prevalece a total incerteza de vida e realização pessoal, essa mensagem poderá vir a encantar e seduzir. Diz Ortega – ele que estudou a alma humana – que todos temos um “fundo insubornável” no nosso espírito. Seria aquilo de mais nobre pelo que sonhamos e não trocamos por nada. Esse “fundo insubornável” é o tesouro da alma brasileira, que não desiste nunca. Esse ímpeto pelo sonho está intacto, apesar da pilhagem diária dos maus governos. Como traduzi-lo? É o desafio maior do discurso político hoje: tocar no fundo insubornável de cada eleitor. Bolsonaro passou perto em 2018. Mas deixou um rastro de frustração, desalento e escárnio. Não esteve à altura do sonho e a covid-19 o apequenou de vez. Quem se habilitaria em 2022? Antigos mágicos ou novos operadores de milagres?
O Brasil não precisa de mágicas nem de milagres, pois que nossa sobrevivência, diante da máquina devoradora dos governos, esta sim, já é um milagre diário. Alterar nossa circunstância de aparência catastrófica é perfeitamente possível, desde que o cavalo da racionalidade passe selado e dê montaria ao candidato “de fato insubornável’’. O eleitor o perceberá. Se isso acontecer – o que desejo e espero para o bem de todos nós – o final de 2022, com a festa do Bicentenário da Independência, marcará um cenário extasiante de libertação e prosperidade. São esses meus melhores votos para o Eu-brasileiro neste desenrolar conturbado da grande era das desigualdades.
Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. Foi Presidente do Instituto Atlântico e fundador da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos público. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa.
O artigo acima não representa, necessariamente, a opinião do Atlântico.
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