O cidadão comum costuma alimentar a ilusão da democracia eficaz, aquela em que os representantes da sociedade, seja no Executivo ou, principalmente, no Legislativo, todos encarnam de corpo e alma os deveres dos seus mandatos. Sabemos que a realidade está longe de ser assim. Existem graus variados de distanciamento, em relação a esse ideal político, na conduta de gestores e parlamentares – para não lembrar de juízes, inclusive os de Altas Cortes – cujas agendas particulares se opõem e se sobrepõem às promessas feitas ao público e, não raro, à própria ética dos cargos ocupados. No Brasil, é minha convicção havermos atingido um ponto-limite nesse distanciamento moral. Não se respeitam programas ou códigos partidários. Não se observa sequer a coerência entre a conduta, a promessa e o voto de ontem com a posição e os compromissos tomados hoje. Importa, sobretudo, a manutenção do mandato pela recondução ao poder, que passa a ter maiores chances de ser alcançado mediante a manipulação de um naco da verba trilionária do Orçamento público, ao qual esses representantes têm acesso privilegiado.
Na democracia dos cidadãos devotos, representantes do povo seriam como abnegados frades e freiras a administrar com eficiência e fé a vida do grande convento nacional. Mas não há frades nem freiras na política nacional. O próprio tamanho do tesouro orçamentário, todo à disposição desse grupo voraz, os corrompe até à medula, na gana de distribuir vantagens a seus apoiadores, nas bases eleitorais, cujas pautas são igualmente paroquiais, quando não contaminadas diretamente pelos desvios de verbas e pela corrupção da máquina. Apesar disso, mesmo sendo uma “democracia” com muitas aspas, o sistema presidencialista ainda é o preferido no Brasil, porque a maioria de nós mantemos um estoque de fé no primeiro mandatário e sua equipe. O presidente da República e seus ministros têm sido sempre uma esperança renovada de alguma seriedade e bom-senso que haveriam de prevalecer sobre as disputas de quadrilha em cima do Orçamento. Quando essa fé no supremo representante e sua equipe nos falseia, o problema crônico da corrupção na democracia se torna um caso agudo e irrefreável de imoralidade e, portanto, de ilegitimidade institucional, requerendo a manifestação direta dos prejudicados, o cidadão pagador, com seus impostos, da farra e da esculhambação.
É o caso do tratamento que o próprio Executivo quer dar agora aos seus débitos junto a milhares de credores, detentores de “precatórios”, ou seja, de ordens judiciais de pagamento contra a União. Precatórios são dívidas reasseguradas pela Justiça, cujos credores precisaram esperar muitos anos e de brigar até conseguirem ter direitos certos ser reconhecidos como devidos. Todo santo ano, o governo federal sabe, com antecedência, dessas contas a pagar. São dívidas executáveis, tal como um título público é dívida. Mas é péssimo costume entre nós o devedor público querer fazer corpo mole e tentar adiar esse pagamento. É imoral, mas é prático, quando a ideia é abrir espaço no Orçamento para as tais benesses aos parlamentares. Não se trata de recursos adicionais para nenhum Auxílio do tipo emergencial. Para esse tipo de exceção advinda da crise da pandemia, não seria preciso emendar a Constituição. Os supostos protetores da Lei Maior a entortam e a enxovalham na caça ao privilégio de gastar sem limite, às custas do adiamento da liquidação de dívidas batendo à porta.
A chamada PEC do Calote (dos Precatórios) deveria ter nome ainda mais apropriado: a PEC do Golpe. Incrível que o passa-moleque dessa PEC – que é um golpe direto ao fiapo de democracia que ainda nos sustém de pé – tenha tido os votos, em primeiro turno, de 306 parlamentares autodenominados “representantes do povo”. Não à toa, um político de currículo impecável, como Ciro Gomes, decidiu “suspender” sua pré-candidatura pelo partido que o abriga, depois que 15 dos 22 deputados da sigla tiveram a cara-de-pau de votar pelo calote dos precatórios. Atitudes radicais são a única opção que resta aos bovinos pagadores de tributos, nós todos, diante de tamanho escárnio à luz do dia. Talvez não passe. É possível que haja arrependidos na segunda votação dessa PEC na Câmara. E ainda resta testar o que teria restado de moralidade no Senado, para onde tramitará a malfadada proposta que pretende bater a carteira do povo em plena praça pública.
Paulo Rabello é economista e fundador do Atlântico. Escreve quinzenalmente no jornal Estado de Minas.
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