Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 13/06/2025.
O experiente comentarista Pedro Cafardo publicou artigo em sua coluna quinzenal do jornal Valor Econômico em que desafia a imaginação dos leitores a enxergar o Brasil dos tempos atuais com uma coloração diferente do que ele identifica como o “mau humor” da visão predominante. Segundo Cafardo, nosso País não é “infeliz” ou, pelo menos, não tão infeliz assim. Pelas lentes cor-de-rosa do jornalista, os indicadores recentes – acompanhando o recorte que ele faz dos dois anos de Lula III (2023 e 24), contra os quatro anteriores de Bolsonaro (2019 a 22) – vêm apresentando notórios avanços. De fato. Mesmo descontando a Covid, a considerar os principais indicadores escolhidos por Cafardo – taxa de desemprego (caindo), taxa de inflação de alimentos (recuando), nível de vulnerabilidade alimentar (melhorando) e renda salarial (também subindo) – não haveria por que a opinião pública se revelar tão “infeliz” em relação à atual gestão do presidente Lula e à política econômica do ministro Fernando Haddad.

Onde estaria a contradição entre os indicadores de melhoria apresentados por Cafardo e o incômodo inexplicável de um povo que hoje se emprega melhor, come mais e tem avanço na renda, até dos mais vulneráveis? Haveria um outro lado da moeda? A verdade é que sim. Cafardo, como bom argumentador que é, selecionou aqueles indicadores que refletem flutuações de caráter cíclico na economia – como as taxas de inflação, de desemprego e de variação da renda salarial – mas evitou falar dos demais indicadores que retratam as condições estruturais do País, tais como o déficit nominal do governo central, a dívida pública e, sobretudo, as taxas de investimento e de produtividade geral .
Não há qualquer contradição entre o País apresentar eventual melhora cíclica, ao lado de uma piora estrutural. Os dois movimentos, de melhora e de piora, podem ocorrer ao mesmo tempo. Aliás, governos de inclinação populista são mestres em manobrar em favor de melhorias de momento, que resultam em alívio passageiro do custo de vida e uma elevação da renda disponível, mas com sacrifício dos resultados ditos “estruturais”, que seriam o equilíbrio das finanças do País e o desempenho na formação de capital, ou seja, os investimentos necessários para garantir a continuidade do crescimento. Para fazer o milagre do alívio momentâneo, a fórmula é conhecida: meter o pé no acelerador do gasto público, concentrando o dispêndio extra no bolso da população mais carente. Convenhamos: essa é a poção mágica que transforma programas sociais em votos na urna. Só que nem sempre. Dilma, para lembrar dela, defendia que “gasto é vida”. E praticou o que defendia. Entre 2013 e 2014, anos finais do seu primeiro mandato, o gasto sem freio lhe trouxe resultados em inflação e aumentos de renda, com redução de desemprego. Os resultados cíclicos de Dilma I se assemelham aos números obtidos por Lula III, entre 2023 e 2024 (ver quadro). Mas a enorme crise que se seguiu, em 2014, embora dando tempo para reeleger a presidenta gastadora, nos mostra como as condições cíclicas de “felicidade” não são sustentáveis sem a devida atenção aos aspectos estruturais. Uma política de impulsão cíclica tem, no máximo, cerca de 24 meses de duração entre o avanço da percepção de bem-estar e a diluição dessa sensação positiva. Dilma impulsionou o gasto a partir de 2012 e teve tempo de passar raspando pela eleição de 2014. Mas foi mandada para casa em 2016. Agora, o tempo eleitoral ficou mais afastado da fase de impulsão. Lula pediu – e o Congresso lhe deu – carta branca para ampliar o déficit público em quase 200 bilhões de reais, antes mesmo de por o pé no Palácio do Planalto, em janeiro/23. Pelo jeito, Lula caiu na esparrela de acelerar no início do mandato e, agora, lhe falta fôlego fiscal e autorização congressual para seguir enfiando o pé na jaca. Lula comprometeu o orçamento do próximo ano eleitoral, para desespero dos seus apoiadores, que pulam fora do barco petista sem muita cerimônia.
Em resumo, Lula saiu pedalando a demanda por consumo cedo demais. Olhando o calendário eleitoral, o ministro Haddad se converteu, sem querer, em arma secreta das oposições. O recado do Congresso, refletindo o ânimo “infeliz” das ruas, é que o Brasil está farto de impulsionamentos artificiais. O País pede reformas sobre as quais Lula e seus associados jamais se debruçaram, nem por curiosidade intelectual.
As condições estruturais do País estão se deteriorando rápido, embora com alguma melhora cíclica dos indicadores de Cafardo. Mas os investimentos públicos nunca decolaram. O setor privado, premido pelas altas taxas de juros e uma carga tributária exorbitante, reluta em avançar nas decisões de ampliação de negócios. O Brasil tem hoje, talvez , a mais baixa taxa de investimento, como proporção do PIB, na faixa de 16 a 18%, contra uma faixa de 32 a 34% entre os países “emergentes”. Na perspectiva estrutural, o País segue travado e, portanto, “infeliz”. O Congresso, perceptivo dessa infelicidade, joga para o colo de Lula e Haddad uma demanda nova, que nem os parlamentares sabem bem como é: as reformas estruturantes. Mas o tempo de reformar está errado. Estamos ingressando num cenário eleitoral. Essas reformas, se vierem, chegarão em 2027, se algum dever-de-casa for feito antes.
Cafardo não deixa de ter certa razão ao protestar por uma visão mais positiva do País, apesar da discordância da grande maioria dos jovens brasileiros que hoje preferiria ter uma chance fora do País. É que o Brasil poderá – até com certa rapidez – inverter essa “infelicidade” toda se adotar a tal agenda estruturante, enquanto controla seu apetite por resultados cíclicos fáceis, mas altamente perecíveis. O País róseo de Cafardo realmente existe. Mas é um outro Brasil.

Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, M.A. e Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. Fundador do Instituto Atlântico e da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente, que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos públicos. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa.
O artigo acima não representa, necessariamente, a opinião do Atlântico.