Desde garoto, sempre me impressionou a força da invocação da Ave-Maria, que todo católico sabe de cor. No colégio, isso faz tempo, a oração se fazia também em latim, “Ave, Maria, gratia plena…”, para emendar no pedido conclusivo à mãe de Jesus: “Sancta Maria, mater Dei, ora pro nobis, peccatoribus…”. A intercessão de Maria é algo que atravessa os séculos. Mãe é mãe, em qualquer época ou lugar. O pedido a Maria reconhece de plano nossa condição de pecadores. Passamos tudo a limpo e lhe invocamos o perdão, agora e na hora de nossa morte (nunc et in hora mortis nostrae).
Fosse eu escalado para tentar compor uma oração para os detentores de precatórios, aqueles valores a receber por pessoas comuns, devidos pela poderosa União federal, não teria dificuldade de parafrasear, até plagiar, a Ave-Maria. Com um simples jogo de palavras, sairiam os pecadores (peccatores) para entrarem os precatórios. Nossa culpa, como pecadores, provém de estarmos vivos, de sermos humanos e sujeitos a erros. A culpa dos detentores de precatórios, pessoas comuns como você e eu, detentoras de um crédito líquido e certo perante o Estado, já resolvido e julgado pelo Judiciário, é mais parecida com um pecado original. Nascemos, como brasileiros, dentro de um Estado, que nos promete e nos ludibria. O precatório é o fio de última esperança do cidadão por tratamento justo pela máquina devoradora de gente chamada governo. O precatório, como esperança, é o “pague-se” comandado pelo braço julgador do Estado; mas se torna expiação e tormenta quando o liquidante – o braço Executivo – se nega a saldar o compromisso e ameaça remeter a dívida para a hora da nossa morte.
Parece dramático o que estou dizendo. Mas esse é o exato resumo do caso “precatórios”, o mais recente surto de irresponsabilidade administrativa e moral deste governo, acolitado por um suposto liberal de Chicago, infante na labuta suja da política nacional. Paulo Guedes assustou-se com a conta de precatórios que terá de acomodar no seu trilionário Orçamento de 2022. Serão R$ 89 bilhões a pagar aos detentores de precatórios, muitos sendo credores minúsculos, tungados em razão de regras mal aplicadas de benefícios do INSS. Há também os malvadamente chamados de superprecatórios, empresas superlesadas pelo Estado que ganharam na Justiça, décadas depois, um direito certo, tornado incerto, porque um ministro foi “apanhado de surpresa”.
Ressalve-se: não são malfeitos desta administração. Estes só repercutirão nas contas à frente. São malfeitos passados, previsíveis, que a Justiça finalmente mandou acertar. A questão – desculpe-me o liberal de meia-tigela Paulo Guedes – não é debater se cabe ou não pagar. Moral e judicialmente, essa questão já foi resolvida. Mas nosso país sofre, por inteiro, uma grave crise de insegurança econômica que dissolve a confiança e mata a liberdade humana. Daí a maldade suprema do notório liberal de Chicago, que enche o peito para falar de liberdade, embora remetendo precatórios líquidos e certos para serem pagos na hora da morte do credor (isso com sorte).
Nada, no plano lógico, justifica o ministro. Nada o respalda no âmbito moral. Nada o recomenda no capítulo do bom exemplo. O erro tático de Paulo Guedes até se entende pela aflição de dar ao seu senhor a chance de mais uma rodada de popularidade pré-eleitoral, ao preterir o pagamento de precatórios em favor do financiamento de mais uma bolada de auxílio emergencial para os milhões de desempregados, eleitores do País. Por certo, a proteção social aos mais carentes deveria ser prioridade na programação do gasto em qualquer ano. Mas os precatórios não vêm em segundo lugar. Concorrem, no mesmo grau de prioridade, por encargos financeiros que são da mesma natureza de uma dívida pública mobiliária vincenda, que ninguém discute se é ou não para pagar. Paga-se e pronto. O precatório deveria, tecnicamente, sair da atual contabilidade, como déficit primário do governo central, para ser lançado na parcela dos encargos financeiros da União. Simples assim.
Guedes está confuso. Quer dedurar os detentores de precatórios como responsáveis pelos pecados da República. Precatórios não são peccatoribus. Os credores do Estado brasileiro não deveriam ser levados a se ajoelhar perante a Virgem Maria para invocar perdão por pecados da República, que não são seus próprios pecados, mas de todos os que, no passado, como administradores, pedalaram pagamentos devidos para garantirem saldos no Orçamento público para seus intentos políticos. Esses gestores, nunca chamados à responsabilidade de seus atos, produziram os precatórios do presente. Nem Congresso, nem Judiciário, nem ninguém em sã consciência pode dar guarida à maldade de um ministro que abandona seu catecismo liberal para descer às catacumbas do populismo em busca de respostas prontas para o desemprego em massa e a fome. “Miserere di me”, como bradou Dante a Virgílio, na descida para o inferno.
PAULO RABELLO É ECONOMISTA, PH.D. PELA UNIVERSIDADE DE CHICAGO (1975), AUTOR DE ‘O MITO DO GOVERNO GRÁTIS’ E OUTRAS OBRAS, EX-PRESIDENTE DO IBGE E DO BNDES, E FUNDADOR DO ATLÂNTICO.
A CITAÇÃO É AO CANTO 1 (V. 65) DA ‘DIVINA COMMEDIA’, DE DANTE ALIGHIERI.