Erasmo de Rotterdam, teólogo que viveu entre 1469 e 1536, foi autor de várias obras importantes, dentre as quais se destacou o livro “Elogio da Loucura”, escrito, segundo ele, para ocupar o tempo durante uma viagem entre a Itália e a Inglaterra.
De forma satírica, ataca os racionalistas e os escolásticos ortodoxos, que tudo submetiam à razão e, em tom jocoso, não poupa de críticas as instituições da época, como a monarquia, a nobreza, os filósofos, os teólogos e a própria igreja a qual pertencia.
Erasmo usa a Loucura como a personagem de seu livro. É a Loucura que fala dos benefícios que produz para a humanidade. Descreve como, através de suas seguidoras, conduzia os homens a alegria, promovia as mudanças e, até mesmo, garantia a sobrevivência da espécie humana.
Dentre suas seguidoras, a Loucura destaca o Amor Próprio, a Adulação, a Preguiça, a Volúpia e Demência, que explicam a conduta humana. Assim, é a Loucura que justifica todos os atos do homem que não decorrem da racionalidade ou, mesmo, que se afiguram como irracionais.
Coloca, como exemplo de decisões não baseadas na racionalidade, o casamento, que ela (a Loucura) atribui a Demência (uma de suas seguidoras) pois envolve incerteza com relação ao futuro. Também a gravidez e, portanto, a perpetuação da espécie humana, decorre da Loucura, pois ela somente se repete devido ao Esquecimento (outro seguidor da Loucura) das dores do parto.
Destaca, ainda, a Ganância como fator que move a humanidade, em contraste com as teorias racionalistas dos intelectuais, que conduziam ao imobilismo, pelo medo de mudanças rumo ao desconhecido.
Esse livro foi oferecido por Erasmo a seu grande amigo Thomas Morus, intelectual e político que ocupou importantes postos na vida pública na Inglaterra. Homem de profundas convicções religiosas, criticou a separação da Igreja Anglicana, e não aceitou o divórcio do Rei Henrique VIII e seu novo casamento.
Acabou sendo decapitado em 1535, mas, antes, escreveu sua obra mais conhecida, UTOPIA, que defendia um governo baseado na racionalidade.
Embora Erasmo defendesse a Loucura e criticasse o racionalismo em seu livro de 1508, o dedicou a Morus, que, ao contrário, em seu livro de 1516, Utopia, imagina uma ilha onde funcionava integralmente a racionalidade, não havendo espaço para a aventura e, portanto, para a Loucura e espontaneidade.
O socialismo da Utopia era extremado, pois não admitia nenhuma forma de propriedade privada, segundo Morus, a fonte de todos os males da humanidade, talvez influenciado pela situação da Inglaterra em sua época, com uma minoria ostentando a riqueza e a grande maioria em condições de miséria. Assim, para ele, o que importava era a igualdade absoluta, retratada em sua Ilha.
É importante destacar que a Utopia da igualdade continua a alimentar os sonhos de muitos “engenheiros sociais”, que desejam moldar o “homem novo”, necessário para o funcionamento de um regime igualitário.
As experiências feitas em vários países mostraram a inviabilidade desse sistema, tendo, inclusive, acarretado pesados custos às suas populações. A diferença entre a Utopia e as experiências práticas que foram tentadas é que Morus imaginava que o sistema seria implantado e dirigido voluntariamente pelas pessoas, pois acreditava, não apenas, na racionalidade, mas também no desprendimento humano.
Erasmo, ao contrário, acreditava no homem real, movido por interesses. Assim, a livre iniciativa somente pode prosperar onde impere a Loucura, pois, “o louco, não tendo vergonha ou medo, jamais vendo o perigo, empreende ousadamente tudo o que lhe passa pela cabeça”. Ela (a Loucura), é que permite empreender, aventurar, inovar, correr riscos.
A igualdade importante, e necessária, compatível com a liberdade de empreender, é a igualdade de oportunidades, de forma que cada um possa utilizar seu talento para progredir e prosperar.
A Utopia de Morus, ao contrário, buscava a igualdade de resultados, assim como as várias tentativas que foram implantadas, no geral, pela força em muitos países, e mostrou que conseguiu apenas nivelar por baixo, ou seja, igualdade na miséria.
Embora pareça existir no Brasil um ambiente no qual se possa praticar a Loucura de empreender, observa-se um avanço cada vez maior do intervencionismo nas atividades econômicas (e também na vida dos cidadãos), o que faz com que se ultrapasse os limites da Loucura apresentados por Erasmo.
Segundo ele, “o louco, exposto constantemente a todos os caprichos da fortuna, aprende em meio a todos os reveses a conhecer a prudência”. No caso brasileiro não são a fortuna (sorte) ou os reveses (riscos do mercado) que ele deve temer, mas sim a burocracia e as intervenções estatais daqueles que se julgam capazes de decidir o que é melhor para o empresário e para o cidadão.
Vamos defender a Loucura de Erasmo para fortalecer o empreendedorismo e combater a Utopia dos que desejam dirigir a economia e a sociedade.
Por Marcel Solimeo, economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo e membro do ATLÂNTICO.
Artigo publicado originalmente pelo Diário do Comércio, em 28 de junho de 2022.