Leiam esta brilhante analogia da nossa querida conselheira jurídica Kátia Magalhães. Com primorosa precisão, ela compara a dramática história de Antígona e Creonte, personagens da tragédia grega de Sófocles, ao cenário brasileiro contemporâneo. Tebas é a Brasília de hoje, e os personagens, todos reconhecíveis…
Antígona, heroína da objeção de consciência
Publicado originalmente na página Judiciário em Foco, do Instituto Liberal, em 10/09/2024.
Você descumpriria uma decisão de autoridade constituída por considerá-la injusta? Uma resposta a essa indagação, tormentosa para a nossa espécie desde as suas formas mais ancestrais de organização social, foi ilustrada na tragédia grega Antígona, de autoria do dramaturgo Sófocles. Fruto da união incestuosa entre Édipo e Jocasta, a personagem-título, após testemunhar as batalhas fratricidas pelo controle de Tebas (em que seus irmãos Etéocles e Polinice matam um ao outro), vivenciou sua tragédia pessoal, em decorrência de um édito de seu próprio tio, Creonte, alçado ao trono.
Ao proferir o decreto desencadeador da tragédia, Creonte não atuou como legislador, pois não estipulou qualquer dispositivo legal, no sentido de norma destinada a reger situações futuras, abstratas e genéricas. Antes, agiu como autoridade judicial, tendo proferido decisões nos casos concretos envolvendo o enterro de Etéocles e, em sentido inverso, a proibição de rituais funerários para Polinice. À luz dos parâmetros de uma democracia liberal, porém, Creonte representa, com perfeição, a figura do magistrado despótico, traidor de todos os deveres inerentes ao cargo, e cuja imprevisibilidade nas decisões acarreta uma insuportável insegurança aos seus jurisdicionados.
Observe, caro leitor, que Creonte iniciou os “casos” Etéocles e Polinice de ofício, ou seja, sem provocação de qualquer parte interessada nas cerimônias mortuárias dos irmãos belicosos. Afinal, Antígona não se dirigiu a ele para pleitear uma decisão declaratória da legalidade do rito fúnebre que pretendia dispensar a Polinice, da mesma forma como nenhum terceiro ofereceu a Creonte qualquer queixa contra a intenção de Antígona de enterrar o irmão. Aliás, sequer houve a instauração de lide! Como Antígona não submeteu seus planos funerários ao juízo de Creonte, e como nenhum tebano contestou, perante o soberano, o desejo da moça de enterrar Polinice, nem mesmo chegou a ser formada a relação triangular “autor-juiz-réu”, própria aos litígios em Estados de Direito.
Outrossim, as deliberações de Creonte, bem distantes da isenção esperada de um magistrado, refletiram os desmandos de alguém avesso ao julgamento de condutas e ávido pela imposição de castigos a pessoas vistas como suas inimigas pessoais. Tanto assim que, após ouvir de Antígona que “as mesmas leis são aplicáveis a todos”, Creonte não hesitou em vociferar: “um inimigo, ainda que morto, jamais se torna um amigo.” Na remota Grécia, Sófocles já nos apresentava o contraponto entre o império das leis, encarnado nos anseios de Antígona pela igualdade formal dos indivíduos perante as normas, e o império dos homens, representado pelo personalismo estúpido de Creonte.
Inebriado pelo poder sem freios, Creonte não titubeou em proferir uma decisão deletéria a toda a cidade, pois o corpo insepulto de Polinice, deixado aos abutres por mero capricho revanchista do tirano, trouxe um odor pútrido e insalubre para os tebanos, que logo viriam a ser expostos à multiplicação de vermes e de toda a espécie de pestilências. Assim como exibiu destempero na imposição de uma pena cruel e desproporcional a Antígona, de vez que ninguém em seu pleno juízo haveria de considerar minimamente razoável a deliberação de negar enterro a um morto e enterrar uma viva.
Já Antígona, embora herdeira direta da linhagem real, em momento algum denotou sede de poder ou pretensões “golpistas” de usurpar o trono por meios violentos. Portanto, sua ação, aparentemente alheia a interesses políticos de substituir o governante e/ou de provocar transformações na coletividade, foi primordialmente movida pela busca de paz com sua própria consciência. A própria Antígona deixou claríssima a motivação para sua desobediência, ao confessar, diante de Creonte, que “se eu tivesse deixado insepulto um corpo que minha mãe trouxe ao mundo, jamais teria encontrado consolo; agora, nada mais me atormenta.”
Como justificativa à sua atitude tomada por razões inerentes ao âmbito privado de sua consciência e não por assuntos ligados ao espaço público, Antígona buscou amparo nas chamadas “leis divinas e imutáveis”. Sob a ótica liberal, Antígona não pretendeu nada além de desfrutar do direito natural às liberdades individuais de ir e vir e de fazer, ou deixar de fazer o que bem lhe aprouvesse, em condutas insuscetíveis de causarem dano a outrem. Tais liberdades não necessitam da chancela estatal, pois inerentes à condição humana, e nem podem ser tolhidas por autoridades, sob pena de intervenção indevida do poder constituído na esfera da vasta gama de escolhas individuais. Assim, a peça de Sófocles pode ser lida como um exemplo de confronto entre a determinação despótica de um poderoso e a objeção manifestada por um indivíduo que se recusa a renunciar às liberdades fundamentais, dentre as quais a de enterrar o irmão.
Após a prisão de Antígona, Creonte, advertido pelo sábio Tirésias, o “cego que tudo vê”, sobre a desgraça iminente para os portadores do próprio sangue do tirano, por “ter enviado ao subterrâneo uma alma ainda viva”, e convencido pelo coro a libertar Antígona, foi às pressas até a sobrinha. Tarde demais, pois a moça já havia acabado com a própria vida; livre até o fim, Antígona fez questão de definir o momento de sua partida rumo ao mundo dos mortos. Dali em diante, Creonte se viu assolado pela perda daqueles que mais amava; seu filho Hémon, noivo de Antígona, e desesperado diante da morte da amada, cometeu suicídio, assim como o fez a própria esposa de Creonte, incapaz de lidar com a ausência do filho.
A geração de danos de proporções catastróficas e, mais grave ainda, todos eles irreparáveis: talvez seja essa a maior tragédia do poder sem limites, cujos efeitos devastadores afetam a coletividade, o entorno do tirano e até mesmo o poderoso, em médio ou longo prazo. Todas as “réplicas” de Creonte, quer usem manto, farda, toga ou outro adereço simbólico da autoridade, fomentam incertezas junto aos seus governados e, em decorrência do ambiente de instabilidade por eles gerado, instilam medo generalizado, revolta e indignação inconfessáveis por uma maioria intimidada, assim como objeção por parte de uns poucos indivíduos nada propensos à alienação das próprias consciências. Enquanto pululam os arbítrios, se inflamam as tensões no tecido social, o trono do “Creonte de plantão” se vê cada dia mais exposto ao risco de queda iminente, e a população lançada à insegurança de um eventual vácuo de poder. Em um cenário de falência institucional, somos todos perdedores, ao fim e ao cabo.
Aos que insistam em repetir bovinamente que “decisão (judicial) se cumpre”, recomendo a peça clássica de Sófocles. Aos tolos que porventura zombem da utilidade de uma obra-prima escrita na antiguidade, sugiro um acompanhamento mais atento do noticiário.
Kátia Magalhães (OAB/RJ 95.511) é advogada e tradutora jurídica no Rio de Janeiro (RJ). Graduada pela UFRJ (1997) e com MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ pela FGV/RJ (2001). Atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros. Atuante na área de traduções jurídicas, nos idiomas Inglês, Francês e Alemão. Coautora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, em comemoração pelos 100 Anos da Revista dos Tribunais. Criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube. Colunista do Instituto Liberal (coluna Judiciário em Foco). Colunista do Boletim da Liberdade.
O artigo acima não representa, necessariamente, a opinião do Atlântico.