Uma estranha pressa
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 04/07/2022.
Paulo Rabello de Castro
Num rasgo de “aborrecimento” – mostrando irritação com a alta dos combustíveis promovida pela direção da Petrobras – eis que nosso galante presidente decide promover a “privatização” da empresa. Para começar, mudança de humor, impaciência, até uma justa indignação, não são motivos para uma decisão tão relevante a ponto de afetar o patrimônio de toda uma Nação. O anúncio de venda de ações da estatal já nasce errado. Dinheiro dos outros é coisa muito séria.
Para além da chateação como causa de uma alienação multibilionária, há erro profundo na outra alegada causa, a de que a Petrobras “já não age pelos interesses do País”. Os tais interesses do País, como seriam eles medidos? Em última análise, trata-se mais de uma questão de valor. O valor da Petrobras, no tempo. Valor hoje e amanhã. Nunca o valor de uma empresa tão grande e complexa poderá ser apurado com clareza e acerto, se formos medir a Petrobras pelo tanto que ela “vale” por gerar empregos no setor de petróleo ou por vender seus produtos mais baratos nos postos de combustíveis. Esses dois objetivos são relevantes mas pouco servem para medir o VALOR da Petrobras. O País ostenta esse valor, como riqueza, pela quantidade de ações detidas por brasileiros residentes ou por alguma entidade pública que represente o coletivo Brasil, que pode ser a União, o BNDES (BNDESPar) ou um fundo de pensão ou de participação. Se os interesses desses “donos” estiverem bem representados na Administração da companhia, então não existe uma situação melhor do que esta para gerar e manter o VALOR da Petrobras para os brasileiros.
Ocorre, no entanto, que o acionista principal, a União, quando representado pela fala do presidente, demonstra impaciência por ser “dono” dessa companhia. Mal sabe ele que esse ativo, isto é, esse grande valor em exploração e geração de tecnologias de petróleo e gás, já está penhorado na garantia do futuro de outros credores da Nação. Quem? Nossos credores externos? Os detentores de títulos públicos na Faria Lima? Não. Pela Constituição Federal de 1988, nos seus art. 201 e 250, em associação ao art. 68 da Lei de Responsabilidade Fiscal, está estabelecido um vínculo preferencial entre o acervo de todos os VALORES, DIREITOS E BENS detidos pela União e o FUNDO criado para cobrir os atuais e futuros pagamentos aos beneficiários da Previdência Social. Em outras palavras, você, eu, o seu vizinho, o seu empregado, somos todos credores de um fundo previdenciário – o FRGPS – sobre o qual a União precisa velar para ele ter reservas que venham a garantir, no futuro, junto com as contribuições que vão sendo recolhidas, o pagamento mensal dos benefícios de aposentadorias e pensões a milhões de brasileiros. Resumo da ópera: o atual presidente, aliás nenhum presidente, pode bravatear que sairá “vendendo estatais” sem antes deixar completamente clara qual seria a estratégia de uso e aplicação desse imenso valor de venda pertencente, em última análise, ao fundo de previdência pública do nosso País. Em síntese, esses bens, na nossa interpretação dos artigos 201 e 250 da CF/88, já estão gravados para um destino específico: nosso futuro comum.
Na mesma linha de raciocínio, a conturbada “capitalização” da outra joia da coroa de empresas brasileiras – a ELETROBRAS – padece de igual vício de motivação, pois a alienação do controle da grande geradora de energia não respeitou o horizonte de valorização potencial que essa empresa pode ter para seus efetivos donos (nós, milhões de segurados do INSS) em instância constitucional. O que se pretende fazer com a ELETROBRAS passa perto de um esbulho de direitos previdenciários constitucionais, o que precisa ser atentado pelos representantes do povo no Congresso ou pelos onze togados do Supremo Juízo em Brasília.
Leiam a Constituição, o livrinho. Meditemos serenamente por que razão o legislador constituinte teria condicionado vendas de valor relevante a um princípio de preferência pelos segurados da Previdência. A Constituição é respeitosa com os direitos coletivos de quem depende hoje, ou dependerá no futuro, de um depósito mensal na sua velhice. É a solidariedade previdenciária que deve vir primeiro. Nenhum mandatário, até mesmo nenhum Congresso, no meu modesto entender, tem o direito de “autorizar vender” nada que é nosso, sem antes – e sobretudo – demonstrar que o VALOR dessa transação representa GANHO LÍQUIDO, presente e futuro, para a riqueza coletiva do País. A pressa de vender empresas de lastro previdenciário público, como Petrobras e Eletrobras, a vésperas de um calendário eleitoral, é um impulso esquisito. Uma pressa bem estranha.
Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. Foi Presidente do Instituto Atlântico e fundador da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos público. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa. CLIQUE PARA FALAR COM O AUTOR.
O artigo acima não representa, necessariamente, a opinião do Atlântico.