Na obra primorosa de Friedrich Durrenmatt, várias vezes encenada em palcos brasileiros, a velha senhora – uma bilionária vingativa e disposta a tudo – retorna a sua cidade natal para impor a condição, nada ética, mediante a qual resgatará, com seu dinheiro de sangue, os cidadãos locais da ruína financeira que os ameaça. A peça volta a cartaz com a recente PEC dos Precatórios. Serão 90 bilhões em gastos extraordinários, prometidos cirurgicamente de modo a comprometer gregos e troianos. O governo solicita esta bagatela ao Congresso Nacional no apagar das luzes do ano fiscal, dinheirama para ser despendida em 2022 com claro objetivo de “vingar” os azares do governo Bolsonaro, massacrado pela pandemia, golpeado pela inflação e, agora, também desmascarado pela incompetência.
Prevalecerá o interesse sobre a regra? A Câmara já disse que sim. Numa votação que expressa bem onde está o interesse de mais de três quintos dos deputados federais, foi aprovado o gasto que viabiliza um Auxílio Brasil permanente e a verba para emendas parlamentares ocultas. Dinheiro para pão e circo. O custo moral dessa decisão preliminar da Câmara nem entrou em cogitação na cabeça da grande maioria dos representantes do povo brasileiro. O custo financeiro da transação tampouco foi levado em conta. A repercussão da medida sobre a desconfiança em futuras ordens judiciais para pagar débitos federais passou longe das preocupações parlamentares. No Senado, encena-se uma reação, apoiada na alternativa oferecida pelo Senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) cuja maior virtude é não deixar o governo tripudiar em cima da regra do teto de gastos, último bastião do controle da despesa pública. Pela PEC de Oriovisto, o Auxílio Brasil seria coberto mediante um corte parcial nas “emendas de relator”, os tais gastos secretos do Orçamento. A verba extra seria completada por outra medida simples: excluir do teto os precatórios do Fundeb. Apesar do bom senso da proposta, o Congresso deve seguir pelo caminho que já havia escolhido antes: o meu pirão primeiro.
Como na peça da Velha Senhora, não há argumento moral que possa prevalecer sobre necessidades imperiosas. O Auxílio é a necessidade principal. Ele já existia, como Bolsa Família e, como tal, sempre foi gasto regular no corpo do orçamento. Mas o governo o fantasiou de “auxílio” para engordar e sair do figurino orçamentário, verdadeiro boi de piranha para ser colocado na PEC dos Precatórios onde jamais deveria estar. O programa de auxílio torna permanente o acesso de boa parte da economia informal a uma mesada do governo, inaugurando o chamado populismo do ócio. Diminui o incentivo à busca do emprego com carteira assinada. Não favorece quem de fato mais carece de um complemento de renda. Compra, na cara lavada, mentes e corações ao perpetuar, no país, um largo exército de desocupados aparentes, misturados aos reais necessitados. Amortece, no entanto, as consciências dos parlamentares quando sacarem os bilhões de suas próprias emendas.
No campo financeiro, a PEC dos Precatórios é o golpe final nos credores do setor público. Anos foram gastos para reerguer alguma credibilidade nos pagamentos ordenados pelo Judiciário. A PEC desorganiza essa confiança, ao estender para o dia-de-são-nunca os pagamentos devidos em 2022. É a toada de um governo apenas preocupado em anestesiar vontades ao despejar bilhões no colo de quem não deveria, às custas dos credores e pagadores de tributos. O resultado está vindo a cavalo, sob forma de mais inflação. Nesse sentido, pela enorme perda de poder de compra que a todos impinge a inflação aguda, os pagadores dos desmandos financeiros do governo somos nós, trabalhadores e consumidores, perplexos com os preços nas gôndolas e bombas de combustível.
Não faz mal. Em recente entrevista o insondável ministro “da Economia” nos conforta, ao declarar que o mercado provavelmente vai errar na aposta para a inflação em 2022. Segundo Paulo Guedes, o erro do mercado será para menos. Sim, porque, segundo ele, a inflação surpreenderá para mais. Fala sério!
Um triste ano para ser o da comemoração do bicentenário da nossa Independência.
Paulo Rabello de Castro é economista e fundador do Atlântico.
Artigo publicado pelo jornal Estado de Minas em 20/nov/2021.