Relendo “1984” de George Orwell

Saindo para internação no hospital para a cirurgia de prótese no joelho, resolvi levar um livro para reler durante a hospitalização. Peguei ao acaso o livro de George Orwell, 1984, na pequena biblioteca que conservo em casa, apenas de livros destinados a releitura, porque os demais encaminho para a ACSP. Esse hábito da releitura decorre da constatação de que em cada uma se descobre novas visões ou interpretações dos textos.

Esse que é o objeto do comentário, o 1984, eu li a primeira vez há mais de 40 anos e me impressionou. Lembro que alguns anos depois, fiz curta visita a Berlim Oriental, antes da queda do Muro. Embora não existisse nada aparente de controles, sentia-se no ar a pressão nos contatos com a população, na certeza de que todos os habitantes viviam sob o temor do Grande Irmão. A sensação ao fim do dia, quando anoiteceu, os prédios muito escuros pareciam sombras. Olhando mais a distância via-se o Muro, que iluminava ao redor com possantes holofotes em cima, tendo ao lado soldados com metralhadoras.  Dentro do ônibus esperávamos aflitos o momento de cruzar a fronteira, enquanto soldados armados e com cães, examinavam o veículo e os passageiros. Quando finalmente o ônibus partiu, olhávamos à frente em uma contagem mental de quantos minutos demoraria para cruzar o Muro. Poucos minutos que pareciam uma eternidade depois, finalmente, começamos a ver as luzes brilhantes do lado ocidental e contávamos os metros faltantes até que, cruzarmos a linha da fronteira. O alívio foi indescritível

(Um parêntesis – Dez anos após a reunificação, estive novamente em Berlim, e fiz questão de visitar a área da antiga capital comunista e verifiquei que a principal avenida, antes feias e escura, agora era povoada de lojas de grife internacionais, como em uma desforra do capitalismo.     

Se a leitura posterior em 2015, o livro me causou alguma preocupação, pois havia avanços em muitos países de governos totalitário e, mesmo no Brasil, se observavam algumas tentativas de controles das liberdades.

A leitura de agora, porém, mesmo que um pouco influenciada pelo ambiente hospitalar e meu estado físico, me deixou muito impressionando de como avançamos na direção de um estado controlador e utilizamos os meios do Grande Irmão para controlar a população brasileira.   

Resumindo os principais pontos do livro que fazem de 1984 uma distopia, uma obra de ficção, passou a ser considerado, cada vez mais, como um alerta dos riscos do comunismo que avançava. Esse   romance apresenta uma visão aterradora de um futuro em que o totalitarismo e a vigilância incessante controlam todos os aspectos da vida. O mundo de “1984” é um país governado pelo Partido, liderado pelo enigmático Grande Irmão, que mantém o poder através da manipulação da verdade, do controle opressivo, e da repressão brutal.

Para isso o Partido utiliza tecnologias avançadas de vigilância para monitorar os cidadãos continuamente, eliminando qualquer espaço para a privacidade e a dissidência.

Manipula a verdade reescrevendo a história.  Através do controle da informação e da reescrita da história, o Partido mantém seu domínio sobre a realidade, criando um ambiente onde a verdade objetiva é irrelevante.

Impõe uma conformação rigorosa aos seus membros, utilizando o medo, a tortura e a propaganda para esmagar qualquer resistência.

O Ministério da Verdade, não apenas reescreve a história, como cria narrativas que devem ser utilizadas em cada momento conforme as circunstâncias. Segundo Orwell, “quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado. Para ele, “a história é escrita pelos vencedores”. 

O “grande Irmão” utiliza a tecnologia e a espionagem para manter a população sob controle. Televisões espalhadas por toda parte tem também função inversa: espionar os cidadãos. Ela lembra a todo momento que o “Grande Irmão” vela por ti ou que ele está te observando.

No Brasil com a moderna tecnologia o executivo e o judiciário criaram órgãos para vigiar as redes sociais, com o que expurgam, punem ou impedem a circulação de matérias que considerem ataques ao Supremo e à democracia, discursos de ódios e posições contrárias que afetem o executivo e o judiciário, substituindo a tecnologia do “Grande Irmão”.

O passado foi reescrito pelo executivo atribuindo todos os problemas presentes, passados e futuros ao governo anterior. A narrativa foi complementada pelo Supremo que, a partir de argumentos falaciosos, transformou os “mocinhos” em “bandidos”, não apenas criminalizando os que comandaram a “lava Jato”, como reabilitaram réus confessos de corrupção, que hoje ocupam o núcleo do governo. Não bastasse isso, ainda devolveram o fruto do roubo, pago voluntariamente no arrependimento (“delação premiada”,) ignorando o Sermão do Padre Vieira, aos príncipes e juízes, que dizia que “arrependimento sem devolução do que foi roubado não tem valor”    

A Novilíngua, criada por Orwell altera sentido das palavras inventas ou suprime outras palavras, sempre considerando a interpretação que interessar aos objetivos do Partido. O “politicamente correto”, que é a Novilíngua do executivo e do Supremo não se preocupa com a etimologia ou o uso corrente das palavras, que assumem o   significado que os detentores do Poder quiserem. Serve sobretudo para “carimbar” inimigos sem precisar maiores explicações. Orwell adverte que as palavras têm consequências, pois ela condiciona o pensamento, que se transforma em ação e gera consequências.

 O maior exemplo disso são as palavras golpe e golpistas que foram adotadas na narrativa do executivo e do judiciário e, lamentavelmente, por grande parte da imprensa em relação à baderna da invasão do Congresso.

(Só para lembrar, pelo menos para a imprensa que está adotando o discurso do golpe, “em 2006, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) invadiram a Esplanada dos Ministérios em Brasília e entraram em confronto com a Polícia Militar na Praça dos Três Poderes. 22 policiais ficaram feridos por pedras e pedaços de madeira arremessados pelos sem-terra. Além disso, manifestantes do MLST, um grupo dissidente do MST, invadiram e depredaram parte da Câmara dos Deputados”).

Não importa o que cada um dos condenados pelo “golpe” fez no 8\01. Todos foram considerados ”golpistas” e isso justifica tudo que se faça em relação a eles     

É evidente que o “golpe” de 8\1 não aconteceu, mas governo e Supremo decidiram ao contrário para justificar ações arbitrárias. A invasão e depredação do Congresso foi um ato de vandalismo condenável, mas, de modo algum um “golpe” para tomada do Poder. Acontece que o governo e o Supremo decidiram considerar não apenas como “golpe” a baderna, mas, também, como “golpistas” todos os que pensaram, agiram, ou se omitiram em relação ao ato de invasão do Palácio. Com a colaboração da imprensa e de colunistas “isentos” essa versão passou a vigorar e está gerando consequências graves para muitos brasileiros, e tem servido de pretexto para atos absolutamente antidemocráticos. Os julgamentos de muitos dos considerados “golpistas” lembram muito “O Processo” de Franz Kafka, cujo personagem Josef K é processado sem saber de que é acusado. Muitos dos golpistas se acham presos sem o devido processo legal e o legítimo direito de defesa. Como lembra Orwell “a história é escrita pelos vencedores”, que não apenas reescrevem a história, como as regras vigentes.

A “velhinha de Taubaté”, aquela que acreditava em tudo, se convenceu de que houve um golpe em 8\1. Apenas está confusa, porque não sabe quem deu o “golpe”, porque quem está mandando sem limites no país é o executivo e o judiciário. A dúvida dela é porque, se houve “golpe”, não deveriam os golpistas terem ficado no Poder?

A proposta de “anistia” que se acha em discussão no Congresso parte de uma premissa equivocada. Anistiar como golpista muitas pessoas que nada fizeram para acabar com a democracia, é estigmatizá-los. O que eles precisam é de justiça. Processos legais, nas instâncias adequadas, com legítimo direito de defesa, julgando cada um por sua ação concreta, e não pelas narrativas. Entretanto, considerando a anomia do país, sem que leis ou regras tenham qualquer significado, e com a sociedade aceitando passivamente as decisões arbitrárias, essa pode ser uma saída de compromisso. Livra da prisão centenas de inocentes, inclusive muitos condenados a penas maiores do que a assassinos e traficantes. Com a anistia se passaria um pano em todas as medidas do judiciário, sem que este tenha que reconhecer suas arbitrariedades. É uma saída não muito honrosa para os inocentes, mas, considerando a atual estrutura de Poder, a única possível.   

Acredito que o ministro Barroso poderia marcar muito mais sua passagem pelo Supremo se, ao invés de pretender “recivilizar” o país se preocupasse em “re-institucionalizar” o judiciário, restabelecendo o princípio da colegialidade e a garantia dos direitos fundamentais assegurados na Constituição.

Marcel Domingos Solimeo

Marcel Solimeo é economista e consultor, é superintendente do IEGV/ACSP, desde 1963, e assessor político e econômico da Presidência da ACSP. Foi superintendente institucional da Associação, coeditor dos livros “O Plano Real Para ou Continua?” e “O Plano Real Acabou?”, autor do texto “A Vocação dos Municípios”, publicado no livro “O Município Moderno”, e de inúmeros artigos em jornais e revistas. Formou-se em Economia pela FEA/USP em 1963, e fez pós-graduação em Economia Pública pela mesma faculdade. Por mais de 20 anos, foi assessor econômico do Clube de Diretores Lojistas de SP e da Confederação Nacional de Diretores Lojistas. 

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