Cabotino pelo dicionário, é aquele sujeito presunçoso que busca chamar atenção para si exibindo qualidades e talentos que de fato não possui. O mesmo acontece na política e nas relações sociais, quando uma pessoa ou um grupo tenta atribuir virtudes a uma ação ou iniciativa desprovida de boas qualidades.
A tal reforma tributária “faseada”, ora em tramitação na Câmara, é um exemplo típico do cabotinismo aplicado às questões de Estado. Para propor uma coisa relativamente simples, o governo estufa o peito, como um galo rompendo a madrugada, ao anunciar como “reforma tributária” uma mera – e mais do que devida – atualização monetária da tabela de desconto do imposto de renda da pessoa física.
Só a completa falta de desconfiômetro poderia explicar o ministro da Economia anunciar medidas aparentemente desconexas num pacotaço de alterações tributárias das pessoas físicas e empresas (o PL no. 2.337), que promete mexer com relações econômicas previamente estabelecidas, trazendo enorme instabilidade para a vida já conturbada dos brasileiros em plena pandemia.
Pior. O ministro sequer faz de conta ter trabalhado e conhecer a fundo seu próprio projeto de “reforma tributária”. Em diversas entrevistas ao longo da semana, Paulo Guedes deixou claro que o projeto inicial foi apenas “uma provocação” para levantar o debate. E como provocou! Protestos brotaram de todos os lados, uns por receio de ter sua carteira de dinheiro surrupiada na pretensa reforma; outros, por se indignarem com o tamanho e gravidade dos erros conceituais embarcados no projeto.
Na Câmara, o relator da matéria, deputado Celso Sabino, procura dar um jeito no Frankenstein e convida a sociedade a apresentar emendas reparadoras. Mas é complicado tentar transformar a figura horrorosa num charmoso George Clooney. Melhor faria o relator em baixar a bola e prosseguir apenas com o pouco que o projeto tem de virtuoso: liberar milhões de brasileiros assalariados de pagar excesso de Imposto de Renda, incompatível com a capacidade contributiva desses cidadãos de renda módica, enquanto a turma do “andar de cima” permanece isenta de contribuir numa proporção equitativa a seus ganhos.
A proposta de correção da tabela de desconto do IR já nasce defasada. Deveria isentar a todos em faixas de rendimentos inferiores a R$ 5 mil mensais, até porque uma família assalariada, com renda conjunta de até cinco mil por mês, na ponta do lápis, entre o que hoje recolhe na fonte ao Fisco e ao INSS, o que suporta de ICMS, IPI, PIS e Cofins na conta do supermercado ou nas contas de luz e telefone, que paga por saúde, educação e segurança privadas e o que vem embutido em juros de prestações, tem para gastar, no máximo, metade do salário bruto escrito na carteira.
A classe média baixa e seu entorno suportam hoje um peso tributário total de cerca de metade da sua renda bruta. Atualizar a correção da tabela do IR ainda não faz toda justiça fiscal necessária para dar a cada brasileiro um tratamento tributário equânime. O ministro da Economia, que pertence ao andar de cima da pirâmide, bem sabe disso. Mas, apesar de seu conhecimento privilegiado, o ministro ainda tem a coragem enviar outro projeto de lei (o PL 3887) para “reformar” o PIS e a Cofins, reunindo-os numa única contribuição, CBS, cuja taxa promete triplicar a oneração tributária de todos os serviços consumidos por aquele cidadão de classe média cuja tabela de desconto de IR se cogita atualizar.
Em poucas palavras, a “reforma” cabotina da tributação dá com uma mão para tirar com a outra, muito mais do que deu com a primeira. O objetivo de aumentar a carga tributária sobre os que já pagam fica mais do que claro. E por que tamanha sanha arrecadatória? Esse é o nosso Congresso, correndo atrás de recursos para bancar as próximas eleições, como sempre acontece em vésperas de pleitos gerais.
O povo já cansou de tanto cabotinismo. Melhor não deixar que façam mais nada daqui até outubro de 2022. Melhor não permitir – se for isso possível – que o Congresso, animado pelo Executivo, autorize fazer qualquer nova “bondade” para a população. Melhor esperar, contando com muita sorte, que possamos ter, desta vez, candidatos realmente preparados e com propostas redondas, que conversem umas com as outras. Só assim haverá alguma esperança de nos livrarmos de novas rodadas de cabotinismo na vida nacional.
Paulo Rabello é economista, diretor da RC Consultores, fundador do Atlântico e tem feito propostas de reforma tributária para o país desde os anos 1980
Artigo publicado orginalmente pelo ESTADO DE MINAS
Crédito de imagem: Freepik