O Brasil se incendeia
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 21/09/2024.
Paulo Rabello de Castro
Com uma quantidade recorde de focos de incêndios espalhados por boa parte do nosso território, o Brasil passa a ser vítima da sua própria incúria, além de espelhar o comportamento extremo da natureza, acuada como um animal feroz, diante do avanço da espoliação do ambiente. Nenhum de nós pode se contar fora de alguma contribuição ao desastre das queimadas, ainda que estejamos a centenas ou milhares de quilômetros de distância. Hoje se sabe que todas nossas ações no dia-a-dia podem contribuir para a vulnerabilidade do entorno: a separação do nosso lixo doméstico reduz o tamanho da pegada de carbono; o desperdício de água no banho e nas torneiras eleva o risco ambiental. Tudo conta, no final do dia, para o balanço positivo ou negativo de nossas interações com o planeta.
Por enquanto, estamos perdendo feio, como sociedade e governo, no placar da reversão de uma futura catástrofe ambiental. O planeta aquece e o Brasil se incendeia. Há, no entanto, fatores contributivos ao desastre que estão fora do nosso controle enquanto país. Falo do comportamento do resto do mundo, quando outros emissores de gases que causam o efeito-estufa não atingem os níveis de controle de suas emissões, conforme pactuado nas recentes Conferências Climáticas — a COP 21, em Paris 2015, e as subsequentes a ela. Sobre os demais países, o Brasil pode exercer apenas influência moral, caso faça sua parte e exija o cumprimento dos demais. Por enquanto, não é o que acontece. Temos um prazo muito apertado, até 2050, para reduzir emissões anuais de gases, pelo Brasil, a apenas 10% da marca atual de emporcalhamento ambiental, de 2,3 bilhões de toneladas de CO2 para apenas 200 milhões.
Os governantes do País, em todos os níveis de administração, precisam fazer a virada de chave, para a sociedade ganhar conscientização e colaborar mais. Sem a participação de cada brasileiro, tampouco será viável esperar resultados palpáveis no tempo que nos resta. Mas tal consciência ambiental depende de não nos escondermos por trás de explicações cômodas. Exemplo disso são os episódios de incêndios intencionais, provocados por ações criminosas e deliberadas, seja para abrir áreas para futuros plantios, seja meramente para causar danos a terceiros. É fácil para governos se escorarem no crime ambiental para esconder sua própria omissão por falta de verbas para o combate a incêndios, ou pior, por absoluta falta de planejamento e prevenção.
Os incidentes ambientais vêm se repetindo ano a ano com monótona regularidade. São decorrência, já sabida, de condições extremas da temperatura do planeta, que provocam secas violentas, de um lado, e inundações e degelos, de outro, tudo em função daquele efeito de “panela de pressão” causado pela liberação de monóxido de carbono e outros gases de estufa na atmosfera terrestre. Estamos todos, literalmente, sendo cozinhados dentro dessa enorme panela planetária. Mas a omissão de governos e a desatenção da sociedade brasileira encontram explicação no atual estado de desespero paralisante que condiciona tanto as decisões dos governantes quanto a pasmaceira geral dos governados. O desespero decorre de uma mistura de ignorância e de falta de planejamento, um alimentando o outro. Quando o presidente da República, em visita recente a Manaus por causa da seca terrível dos rios amazônicos, vem anunciar a instituição de uma nova Autoridade Climática e de mais um grupo técnico-científico, o anúncio é fruto de puro desespero diante de fatos incontroláveis. É o piloto anunciando uma manobra para tentar contornar o descontrole da aeronave que comanda. Por que criar, agora, uma nova “autoridade” para o clima, se existe uma ministra do meio ambiente e, aliás, um ministério inteiro (mais de trinta sujeitos) e diversos órgãos de defesa civil e acompanhamento de situação climática espalhados por tantos gabinetes em Brasília? Seria a medida destinada a “organizar o meio de campo”, no linguajar futebolístico?
Medidas preventivas são as mais importantes nessa hora. Não dependem de gastos vultosos, tanto quanto de iniciativas planejadas. A primeira coisa que nos falta é o próprio inventário ambiental. Precisamos levantar a “fotografia” — o quadro completo — do ambiente brasileiro, por meio de um Censo Ambiental. Deixei essa semente plantada no IBGE, para ser deflagrado tal levantamento de fauna, flora, relevo e recursos hídricos e minerais. Deveria ter ocorrido anos atrás, porém foi suspenso por falta de verba e de vontade. A iniciativa precisa ser retomada e, possivelmente, conjugada à nova edição do Censo Agropecuário, já atrasado, que, em 2017, visitou 5 milhões de propriedades rurais no território brasileiro. Sem essas informações gerais e atualizadas, apoiadas por informações via satélites e drones, vamos continuar a enxugar gelo nos debates sobre meio ambiente.
Em seguida, precisamos mobilizar a população para a prevenção e o combate a incidentes ambientais. A enchente no Rio Grande do Sul mostrou, de um lado, o despreparo de autoridades, mas de outro, a generosidade da população em colaborar. Dependendo das vulnerabilidades locais, seja a inundações, deslizamentos de terra ou incêndios, brigadas civis formadas por voluntários deveriam estar previamente escaladas e treinadas para entrar em ação, apoiando a defesa civil e o corpo de bombeiros. O mesmo se deveria esperar das unidades estacionadas das Forças Armadas. Isso custa mais planejamento do que dinheiro. Custa massa cinzenta e vontade de fazer.
No campo de políticas públicas, envolvendo áreas de saúde, educação, energia e cidades, a falta de coordenação nas diretivas ambientais ainda é regra geral. Um exemplo gritante disso é a decisão de se incluir a modalidade de carros elétricos na futura taxação punitiva do imposto seletivo. Por quê? Uma das metas principais do País é o controle da poluição urbana pelos automóveis movidos a combustíveis fósseis.
As lideranças políticas do País se perdem entre objetivos e meios por não conhecerem o traçado do caminho a ser percorrido. A questão ambiental, assim como a condução da economia, está a exigir mais do que declarações genéricas dos governantes. Mais uma rodada de escolha de mandatários locais — prefeitos e vereadores — se aproxima, com os mesmos vícios e as cenas hilárias do horário eleitoral. A gente ri, sim, mas é para não chorar. Enquanto isso, o Brasil pega fogo. Na velha Roma de Nero também foi assim.
Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. Fundador do Instituto Atlântico e da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente, que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos públicos. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa.
O artigo acima não representa, necessariamente, a opinião do Atlântico.