Miragens de 2050

A meio caminho de um melancólico fim de governo, eis que o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO) resolveu deflagrar um esforço de mapear o que seria o Programa de Governo de Lula, só que na visão rocambolesca de 2050, como se os passos da atual administração de fato obedecessem a um plano ordenado conforme a visão longa do que queremos vir a ser num futuro distante. O ministério de Simone Tebet soltou, então, um primeiro documento sobre as tais “megatendências mundiais” e inventariou as incertezas que afetarão o Brasil até a metade deste século. Para os brasileiros, que não fazem nem ideia de como lidar com as fraudes do INSS e outros desmandos do governo, pensar em como será o Brasil de 2050 soa como um convite para ficarmos sentados, contando carneirinhos, enquanto fitamos nuvens no céu!

Nada contra tal estudo. Mas é frustrante saber que há tantos funcionários no governo dedicados a confabular sobre o horizonte escondido daqui a 25 anos – todos sendo bem pagos, com nossos impostos, para ficar pensando sobre aquele nebuloso futuro – quando o momento presente está fervendo de problemas prementes a serem equacionados e resolvidos. A transição demográfica e o envelhecimento da população vão requerer uma nova previdência social para o País? Certamente que sim. Contudo, o que se requer para ontem é a troca dos maus gestores do instituto previdenciário e a devolução de descontos indevidos. Os Estados Unidos irão perder sua hegemonia no cenário mundial? Talvez; mas muito antes disso, precisamos saber como mexer nas causas da baixa competitividade da indústria brasileira, quase todas sendo razões ligadas, de algum modo, a políticas perversas de governo, como a tributação excessiva, os juros altos demais, os tratamentos desiguais entre empresas semelhantes, os subsídios e privilégios dados a certos grupos, a burocracia desnecessária, apenas para citar alguns monstros de Brasília que poderiam ser combatidos pelos técnicos oficiais. As questões relacionadas a evidentes travamentos da economia atual, e não especulações sobre incertezas distantes e obstáculos mal conhecidos, é que deveriam ser objeto de busca obsessiva por respostas pelas equipes dedicadas ao planejamento objetivo do País.

Das inúmeras incertezas sobre o futuro elencadas no documento ministerial, salta aos olhos o problema da sustentabilidade fiscal, ou seja, a dúvida lançada por Brasília sobre a capacidade de a economia brasileira conseguir arcar com o tamanho do próprio governo e de seus compromissos financeiros daqui para frente. A pergunta faz todo sentido, porque as despesas da máquina pública não param de crescer, sempre numa velocidade maior do que a capacidade de o setor produtivo gerar recursos para bancar a conta indigesta. Mas curioso mesmo é o próprio governo levantar a dúvida, sem conseguir oferecer respostas, nem sequer pistas, de como resolver o impasse.

Tímido no enunciado do travamento fiscal do País e mudo quanto às possíveis soluções dessa questão, o documento é uma peça de recusa à responsabilidade de planejar e resolver os problemas centrais da hora presente. No entanto, o impasse fiscal não cessará só por ser evitado. Temos, atualmente, déficits orçamentários da ordem de 9% do PIB e uma dívida pública bruta elevada e em rápida expansão, já que os custos dos encargos financeiros incidentes são regulados pela taxa SELIC, hoje na casa de 14,75% ao ano.  Para o setor produtivo do País conseguir pagar essa conta despropositada de juros sem suar sangue, seria preciso que as atividades econômicas estivessem crescendo na faixa de 8% ao ano. Ora, o país produtivo mal consegue um desempenho anual entre 2 e 3%. Em outras palavras, a carga tributária tem que continuar se elevando de modo obrigatório, mesmo que isso signifique a morte de nossa competitividade perante outros países.

Não é de espantar que o documento oficial do governo evite tratar em detalhe da variável que seria central para planejar nosso futuro: os investimentos. Não há como incentivar novo ciclo de investimentos com juros perto da lua. De fato, nenhuma atividade normal, envolvendo riscos empresariais normais, consegue apresentar expectativa de rentabilidade que possa competir com uma SELIC da ordem de 15%. Não por acaso, a formação bruta de capital no Brasil tem girado em torno de uns magros 16% do PIB. Em outros países, em estágio semelhante ao Brasil, os investimentos anuais chegam a 32% do PIB, em média, portanto o dobro da marca brasileira. A consequência inevitável dessa situação são os “vôos de galinha” da economia brasileira: cada vez que o governo estimula a demanda para crescer mais forte, a economia produtiva esbarra nos juros altos que impedem investimentos e sufocam a maior produção interna. Sobrevém, então, o ajuste desse impasse entre a oferta apertada e a demanda acelerada por meio de mais inflação. Daí vem o Banco Central, a combater essa alta dos preços com juros ainda mais elevados. Não há contradição de política econômica mais evidente do que esta, de juros combatendo preços em alta pelo sufocamento da atividade produtiva. No entanto, pouco ou nada se fala disso no documento do governo.

Diante da ausência de respostas úteis e práticas para as premências do momento brasileiro, o planejamento oficial do governo Lula resolveu mirar a longa distância, no longínquo 2050. Trata-se daquilo que a psicologia costuma chamar de uma Dissonância Cognitiva, uma desordem do comportamento que nos leva a carregar guarda-chuva em dias ensolarados e a usar óculos escuros para enxergar melhor de noite. Ou a contar carneirinhos em céu sem nuvens.

Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, M.A. e Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. ​Fundador do Instituto Atlântico e da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente, que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos públicos. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa.

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