Publicado originalmente no site relatorioreservado.com.br, em 12/05/2025.
Quando Donald Trump anunciou que Elon Musk presidiria um novo órgão chamado DOGE (Department of Government Efficiency), me perguntei se alguém naquela Casa Branca sabia que a palavra tinha origem nobre, derivando do latim dux e designando por mais de mil anos o governante máximo da República de Veneza. Mas havia uma diferença capital: enquanto o magistrado veneziano era eleito, o americano era um rei ungido por outro rei, não tendo sido submetido às normas de aprovação de altas autoridades governamentais que exigem o placet do Senado.
Nos primeiros dias da nova administração, o mundo ficou pasmo ao ver, circulando à vontade no solene Salão Oval, um cidadão usando roupas esportivas e boné, por vezes na companhia do filho de quatro anos, X Æ A-Xii (que sensatamente mandou Trump se calar). Mas, já em sua primeira aparição naquele augusto recinto, o bilionário fez declarações estapafúrdias acerca da corrupção nas agências governamentais, dizendo inclusive que US$ 50 milhões em recursos públicos tinham sido usados para enviar camisas de vênus para Gaza. Comprovando o amadorismo irresponsável da equipe que ele contratou para executar tarefas supostamente de grande envergadura, verificou-se depois que se tratava de uma província de Moçambique com nome idêntico ao da massacrada Faixa do Oriente Médio, bem como de um programa de combate à AIDS e à tuberculose que não teria envolvido o fornecimento de preservativos.
Como é de conhecimento geral, nas semanas seguintes Donald Trump e Musk divulgaram inúmeras informações falsas ou distorcidas sobre fraudes e gastos injustificáveis, mas o propósito básico das intervenções de Musk consistia em reduzir o déficit orçamentário e, com isso, contribuir para sustar o crescimento aparentemente incontrolável da dívida pública americana. Como tive a oportunidade de expor em artigo publicado recentemente no Relatório Reservado sob o título de “Quo vadis, Donaldus? II” (https://relatorioreservado.com.br/noticias/quo-vadis-donaldus-ii/), esse é o maior risco para a economia do país, pois no corrente ano se estima que a dívida ultrapasse US$ 35 trilhões, o equivalente a mais de 120% do PIB norte-americano.
Usando uma motosserra idêntica à que Javier Milei lhe deu mais tarde, Musk encerrou contratos relativos a pesquisas científicas e iniciativas de mudança climática, além de programas voltados à diversidade, equidade e inclusão. Ademais, provocou a dispensa de dezenas de milhares de funcionários e desmantelou numerosas organizações, auxiliando também as incursões contra imigrantes. Em outra delicada vertente de ação, ganhou acesso a informações governamentais antes sigilosas, incluindo matérias de segurança nacional. Nessa área, o Pentágono se preparava para expor a Musk os planos secretos de uma eventual guerra contra a China quando, diante da gritaria geral, essa absurda revelação teria sido sustada.
Em suma, o que se tem de concreto é que as medidas atrabiliárias do doge americano não se basearam em análises técnicas segundo critérios de eficiência sugeridos pelo nome do novo “departamento”, e sim por princípios ideológicos caros à direita, sobretudo no tocante a raça, sexo e religião.
Embora tais medidas continuem a contar com amplo suporte dos eleitores republicanos, são cada vez mais intensas as críticas de outros setores no tocante à falta de transparência do órgão criado por um ato presidencial e não pelo Congresso, assim como ao fato de que Musk assumiu poderes totalmente incompatíveis com sua designação por 130 dias como “empregado especial do governo”. Causa também grande preocupação o potencial de conflitos de interesse, uma vez que os negócios controlados por Musk mantêm contratos de bilhões de dólares como governo e grande número das agências afetadas efetivamente lidam com questões relacionadas a seus interesses pessoais. No judiciário, cresce o número de ações movidas contra o órgão por grupos de cidadãos ou pelos procuradores-gerais de estados liderados por governadores do Partido Democrata. Em consequência, os tribunais já sustaram medidas que impunham cortes de custo ou permitiam acesso a informações pessoais mantidas nos registros do Departamento do Tesouro, gerando grave instabilidade institucional e jurídica.
O mais significativo, porém, é o fato de que, tendo Musk anunciado inicialmente que reduziria os gastos federais em US$ 2 trilhões, esse número caiu sem fanfarras para US$ 1 trilhão e, recentemente, para meros US$ 160 bilhões, dos quais apenas US$ 63 bilhões têm algum tipo de comprovação. Diante de resultados tão pífios, não surpreende que o bilionário, às voltas com mil problemas na Tesla, já viesse assumindo um perfil muitíssimo mais baixo aos olhos do público, em contraste com a impressão inicial de que se mudara para a Casa Branca e dividia o Salão Oval com Trump. Conquanto ambos ainda insistam em declarar que tiveram imenso sucesso, o doge americano diz agora que está pronto a dedicar apenas um ou dois dias por semana às duras tarefas governamentais.
Os líderes da Sereníssima Repubblica di Venezia certamente conheciam as fábulas de Fedro e, por isso, saberiam que às vezes as montanhas só conseguem parir um rato. Alguns dos potentados contemporâneos fariam bem caso pudessem alcançar tal nível de sabedoria.

Jorio Dauster nasceu em 1937, no Rio de Janeiro é um diplomata, empresário e tradutor brasileiro.
Como tradutor, verteu para o português brasileiro livros de autores como J.D. Salinger e Vladimir Nabokov.
Foi, entre outros cargos, secretário no consulado do Brasil em Montreal e nas embaixadas em Praga e Londres, presidente do Instituto Brasileiro do Café (1987-1990) e da Companhia Vale do Rio Doce (1999-2001) e embaixador do Brasil junto à União Europeia (1991-1998).
Entre 1972 e 1974 fez parte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, como coordenador do sistema brasileiro de patentes. Entre meados de 1990 e 1991, durante o governo Collor, Dauster colaborou como negociador-chefe da dívida externa do Brasil
Entre 2001 e 2003 foi sócio de Luiz Cesar Fernandes no grupo Invixx. Atualmente, é consultor de empresas.
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