Alcance e limites do Supremo em face do dogma da separação e harmonia entre os 3 poderes

Alcance e limites do Supremo em face do dogma da separação e harmonia entre os 3 poderes

Ives Gandra da Silva Martins

Participei de audiências públicas durante os 20 meses dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, mantive permanente contato com o relator da Constituição, Senador Bernardo Cabral e, repetidas vezes, com o presidente da ANC, Deputado Ulisses Guimarães, o que facilitou a elaboração dos Comentários à CF/88 que Celso Ribeiro Bastos e eu realizamos, por 10 anos, em 15 volumes para a Editora Saraiva.

Aqueles que lá estiveram, especialistas em uma primeira fase de áreas variadas do conhecimento, mas principalmente do Direito, que ainda sobrevivem, como eu aos 88 anos, após 35 anos da promulgação da Carta da República, hão de se lembrar que uma das maiores preocupações dos Constituintes era de ser a Constituição um texto supremo representativo da vontade do povo, pois este seria o verdadeiro soberano, através da harmonia e independência dos 3 Poderes.

Tanto assim é verdade que os dois primeiros artigos da Constituição são dedicados a mostrar que:

1 – O povo era soberano em

2 –constituir um Estado Democrático de Direito, democracia esta 

3 – a ser exercida pelos representantes do povo através 

4 – de 2 Poderes eleitos pelo povo, a saber: Legislativo e Executivo e 

5 – um poder técnico não eleito pelo povo, a saber: o Poder Judiciário, que deveriam 

6 – ser harmônicos e independentes.

Por esta razão, os artigos 44 a 69 definiram exaustivamente a competência de atribuições e legislativa do principal Poder representativo do povo, que é o Legislativo, por isto em primeiro lugar na Carta Magna, pois lá está a totalidade da nação, ou seja, situação e oposição.

O Constituinte acrescentou os artigos 70 a 75 para definir a competência do Tribunal de Contas, que deve, em alguns pontos, vênia ao Legislativo.

Em seguida, colocou as competências de outro Poder representativo do povo, não de sua totalidade, mas sim de sua maioria e nem sempre dela, como ocorreu, por exemplo, na eleição do Presidente Lula que teve 40% dos eleitores brasileiros contra 39% de seu opositor, o ex-presidente Bolsonaro, sendo que 60% dos cadastrados na Justiça Eleitoral (90 milhões de eleitores) nele não votaram, pois só teve 60 milhões de 150 milhões de inscritos. Pelo sistema eleitoral representou, entretanto, sua eleição a vontade da maioria no segundo turno. São os artigos 76 a 91.

Por fim, conformou o terceiro Poder não representativo do povo, que não o elege, mas da Lei, que não faz, pois só pode ser feita pela primeiro Poder e, eventualmente, pelo segundo, que é o Poder Judiciário, com atribuições definidas nos artigos 92 a 126 com a colaboração de duas instituições essenciais à administração da Justiça, que são o Ministério Público (artigos 127 a 132) e a Advocacia (artigos 133 a 135).

Para evitar invasões de competência, a CF/88 definiu no artigo 49 inciso XI que o Congresso deveria zelar por sua competência normativa em relação aos Poderes Executivo e Judiciário e condicionou a competência legislativa do Executivo, através de medidas provisórias e leis delegadas, ao aval da Casa das Leis (artigos 62 a 68), tendo proibido ao Poder Judiciário a função legislativa até mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2º), em que, uma vez declarada a omissão inconstitucional do Parlamento, não pode o Judiciário produzir a lei, mas pode solicitar, ainda que sem prazo definido, que ela seja elaborada pelos Congressistas.

Por esta razão, declarou ser o STF guardião da Constituição, não lhe outorgando, todavia, funções legislativas ou supletivas do Senado ou da Câmara dos Deputados.

À evidência, não é o que está ocorrendo, no momento, inúmeras vezes, com o STF assumindo funções legislativas, como ao criar hipótese impunitiva de aborto eugênico não constante do artigo 128 do Código Penal; acrescentando hipótese de casamento não permitido pelo artigo 226 da Lei Suprema entre pessoas do mesmo sexo; abrindo exceção não constante do artigo 53 da Carta da República à inviolabilidade do parlamentar por mera manifestação; admitindo hipótese de persecução penal de iniciativa da própria Corte contra a clareza do artigo 129 da Lei Maior que declarou ser esta de competência privativa do Ministério Público; suspendendo governador eleito pelo povo de suas funções sem provocação, quando a competência seria do Superior Tribunal de Justiça; criando a figura de flagrante intemporal se algo permanecer publicado na Internet, contra a clássica exegese do Código Penal de que flagrante é o que ocorre no momento em que o ato é realizado, assim como inúmeras outras decisões de caráter normativo, que os transformam, com a devida vênia aos reconhecidos e ínclitos Ministros da Suprema Corte, em verdadeiros legisladores não eleitos pelo povo.

À evidência, não discuto a competência de S. Exas., embora reconheça que adentram em uma escola doutrinária, que não é a minha, denominada ou de consequencialismo jurídico ou de neoconstitucionalismo, em que a flexibilização no poder de decidir e pretender corrigir os rumos da democracia, transforma o Pretório Excelso no Super Poder da República

Acompanhei os trabalhos constituintes pelos vinte meses, tendo algumas disposições do texto sido de minha autoria, através de parlamentares que as propuseram e as tiveram aprovadas. Posso, pois, afirmar que a intenção dos constituintes era substituir o regime de um Super Poder da República, à época representado pelo Executivo pela harmonia e independência dos Poderes, sem que prevalecesse um Poder sobre o outro, daí a razão da enunciação detalhada de suas competências nos artigos 44 a 135.

Respeitando a linha hoje adotada pela Suprema Corte, mas tendo o direito de dela divergir, no campo doutrinário, entendo que traz, a corrente por ela adotada, insegurança jurídica, pois nunca se sabe em qualquer questão quando irá decidir com base no Direito vigente ou quando irá legislar.

Meu sonho, como velho professor de Direito Constitucional, é que volte a Suprema Corte a ser o que era quando considerada a mais respeitável instituição do país, para que seus 11 Ministros, que são competentes e dignos de respeito, não sejam, conforme a linha ideológica dos que os veem à rua, tratados como políticos, hora sendo aplaudidos, hora vaiados e perseguidos como se pertencessem a um poder político igual aos outros.

É um velho sonho que eu não sei se verei, na medida que, aos 88 anos, meu relógio do tempo parece estar se esgotando. 

 

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Ives Gandra da Silva Martins, Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME, Superior de Guerra – ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs-Paraná e RS, e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO – SP; ex-Presidente da Academia Paulista de Letras-APL e do Instituto dos Advogados de São Paulo-IASP.

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