Juro Alto: remédio ou veneno?

Juro Alto: remédio ou veneno?

Publicado originalmente no jornal Estado de Minas, em 11/02/2023.

Paulo Rabello de Castro

Numa visita ao então presidente do Banco Central, colega Armínio Fraga, no longínquo ano 2000, critiquei a Selic muito alta e sublinhei a urgência de o Copom praticar juros mais próximos ao efetivo risco dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, o chamado risco-país. Fraga não só concordou como concluiu com uma frase atual até os dias de hoje: “…realmente, o juro no Brasil não é normal.” Tal anormalidade do nível e no modo de fixação da taxa básica SELIC (acrescente-se: e, sobretudo, dos juros bancários) tem sido, desde então, objeto de alertas e ressalvas, não só nossos, mas de tantos outros economistas atentos às repercussões altamente danosas dos juros altos demais sobre a estrutura produtiva nacional e as finanças públicas. 

Decorrido quase um quarto de século (!) daquela visita ao Armínio, ainda grassam ideologismos em escolas “de pensamento”, vaidades pessoais e interesses, acima da observação fria dos fatos. E quais são os fatos? Numa síntese corajosa, o Banco Central tem, sim, mandato para defender a estabilidade da moeda, mas certamente não tem alçada para destruir, mesmo acidentalmente, a produção brasileira. Há um sutil limite, uma marca divisória, entre usar o fármaco do juro como remédio ou de aplicá-lo como veneno. Mas é nítida a desconsideração do Copom – o Comitê de Política Monetária que fixa a taxa básica de juros – sobre o estado de saúde da economia. Há décadas, a SELIC é fixada sem aparente preocupação pelos efeitos do juro no nível do emprego nem sobre os bilhões de reais diariamente pagos como juros, tanto pelo governo como por empresas e pessoas. Só ano passado, o dispêndio federal com juros foi a R$586 bilhões. Este ano pode chegar perto de R$ 800 bi. Nenhum outro gasto federal compete com essa soma astronômica. Apesar disso, o Legislativo não debate juros na aprovação orçamentária anual. Esse gasto é considerado “automático”.

Com sua independência legal, o Banco Central ficou ainda mais longe de qualquer escrutínio pela sociedade. Ao inibir o consumo com juros mais altos, na expectativa de moderar a demanda e, assim, deter uma alta inflacionária, o BC deveria mostrar sensibilidade pelo fato de estar também refreando a produção, com efeito recessivo mais forte no Brasil do que em outros países, por causa do oligopólio nos juros bancários – taxas de cartões, créditos diretos e saques especiais. Enquanto o BC deixa passar isso, a inflação permanece acima do limite da meta por três longos anos.

A presunção do BC de que os juros detêm o consumo é afirmação fraca na medida em que não se aplica ao consumo do governo – que é comandado pelo saldo financeiro entre o que o governo gasta e arrecada- aí incluídos os enormes gastos previdenciários, assistenciais e pagamentos aos rentistas que, por definição, farão decisões de consumo bastante insensíveis ao nível de juros. Nesse caso, boa parte do esforço de aplacar a inflação com o remédio de juros altos é jogado fora por uma mistura incorreta entre a política monetária (demasiadamente apertada) e a fiscal (frouxa demais). Se isso é fato, então o mandato dado ao Banco Central para manter a inflação nos limites da meta é um comando legal torto ou incompleto. Em bom português, é um mandato estúpido, porque não “conversa” com o lado fiscal. O governo gastador não se sente responsável pela inflação de demanda (sem oferta correspondente) que ele mesmo provoca. Destrói-se a produção nacional, mas o consumo excedente permanece, sustentado por largas transferências fiscais e gordos encargos sobre a dívida pública.

Não poderiam ter inventado uma “independência” mais disfuncional. Em última instância, a responsabilidade sobre inflação não é só do BC e, sim, do hoje camuflado Conselho Monetário Nacional, que a mídia e a academia desconhecem. Ali, sentados no CMN, deveriam estar os ministros da Fazenda e do Planejamento, o presidente do BC, como também membros independentes da sociedade, com mandato para defender a moeda e sustentar a saúde da produção. Para auxiliar o CMN nesta tarefa, há previsão legal de outro órgão relevante – o Conselho de Gestão Fiscal – criado no art. 67 da LRF desde 2000, mas jamais instituído. Por quê?

O mercado não tem razão científica alguma para defender o atual nível de juros. Esse nível tem sido praticado acima da “normalidade” (ou seja, muito acima do que seria a relação do risco-país com a inflação projetada) enquanto os governos tampouco se empenham com clareza para dar a cada real arrecadado de imposto o tratamento de seriedade e dignidade que o gasto público merece.

Se o presidente fala sério sobre juros, e se o “mercado” decidir parar de repetir narrativas convenientes à manutenção de suas vantagens, deveríamos sentar para fazer cumprir os mandatos dos dois conselhos, o monetário e o fiscal, sendo o primeiro por precisar ser reformado e empoderado e o segundo, para ser instituído e prestigiado.

Quanto aos colegas economistas, que possamos perceber a ilusão de tentar alcançar uma estabilidade de preços jogada exclusivamente nas costas do BC e dos juros na lua. Essa é uma péssima opção para o País. Não à toa temos tido, desde o Plano Real, um desempenho médio do PIB Brasil de apenas 2% ao ano enquanto, na média mundial, o PIB planetário tem crescido a 3,5%. E assim continuaremos, nesse autoengano, até que o País consiga atribuir os deveres da condução monetária e fiscal aos atores corretos e na medida certa das responsabilidades de cada um. Só então, o juro deixará de atuar como veneno que nos paralisa e impede de crescer.

 

Paulo Rabello de Castro, formado em Economia e Direito, Ph.D pela Universidade de Chicago, ex-Presidente do BNDES e do IBGE, fundador e sócio da RC Consultores. ​Foi Presidente do Instituto Atlântico e fundador da OSCIP Instituto Maria Stella. Fundou o Movimento Brasil Eficiente que propõe uma simplificação da carga tributária e mais eficiência dos gastos público. É autor de mais de 10 livros, entre os quais O Mito do Governo Grátis, Rebeldia e Sonho e Lanterna na Proa. 

 

 

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